Por Bruno Lupion, do site DW.com – Em reação ao alinhamento do Brasil aos Aliados, submarino alemão atacou o barco Changri-lá em 1943. Após quase oito décadas, Supremo analisa se familiares dos tripulantes mortos têm direito a indenização da Alemanha.
Em julho de 1943, o submarino alemão U-199 navegava na costa de Cabo Frio (RJ) quando abriu fogo contra um pequeno barco de pescadores chamado Changri-lá, matando seus dez tripulantes. Foi um dos diversos ataques alemães do tipo na costa brasileira durante a Segunda Guerra Mundial, em reação ao alinhamento do Brasil aos Aliados.
Hoje (24/09), o plenário do Supremo Tribunal Federal pode decidir se os familiares das vítimas do Changri-lá têm direito a indenização do governo alemão, em um julgamento com repercussão geral para processos semelhantes. Os ministros discutirão os limites da soberania de outros países em relação à não submissão à Justiça brasileira, e se a violação a direitos humanos seria uma exceção a essa regra.
O caso demorou 77 anos para chegar ao Supremo, porque o motivo real do naufrágio só foi esclarecido em 2001. Por falta de provas, o Tribunal Marítimo havia concluído, em 1945, que o barco pesqueiro sofrera um naufrágio normal, devido a erro humano, de equipamento ou por condições meteorológicas.
Até que, no final da década de 1990, o então estudante de história Elísio Gomes Filho fez uma pesquisa de documentos que levou à reabertura do caso. Após analisar a localização das embarcações e depoimentos dos tripulantes do submarino, o Tribunal Marítimo concluiu que o Changri-lá fora afundado a tiros de canhão pelo U-199.
Os familiares das vítimas decidiram então recorrer à Justiça brasileira para solicitar que o nomes dos pescadores fossem incluídos no Panteão dos Heróis da Segunda Guerra – o que ocorreu em 2004 – e pedir indenização por danos morais e materiais ao governo alemão.
O contexto da guerra
Então presidido por Getúlio Vargas, o Brasil atravessou os dois primeiros anos da Segunda Guerra tentando se equilibrar entre os Aliados e os países do Eixo, até que o envolvimento crescente dos Estados Unidos e um empréstimo norte-americano para criar a Companhia Siderúrgica Nacional fizeram o país tomar um lado.
Em janeiro de 1942, o Brasil rompeu as relações diplomáticas com Alemanha, Itália e Japão, e anunciou seu alinhamento aos Aliados. Em represália, em junho de 1942, o então chanceler alemão, Adolf Hitler, determinou uma ofensiva marítima contra barcos civis na costa brasileira, e enviou uma flotilha de dez submarinos, que partiram da França ocupada e eram reabastecidos por um submarino-tanque.
Os submarinos alemães passaram então a realizar ataques em série, que afundaram diversos barcos mercantes e de passageiros brasileiros, levando à morte de centenas de pessoas em 1942. Em 22 de agosto daquele ano, o Brasil entrou oficialmente em guerra contra a Alemanha e a Itália.
O Changri-lá foi um dos menores barcos atingidos por submarinos alemães. Alguns dias após o ataque, o U-199, comandado pelo alemão Hans Werner Kraus, foi afundado por aviões da Força Aérea Brasileira e dos Estados Unidos. Seus tripulantes foram presos e enviados aos Estados Unidos, onde, em depoimento, admitiram ter afundado um navio pequeno com as características do pesqueiro brasileiro.
O impacto nas famílias
A morte repentina e sem explicação deixou marcas nos parentes dos dez tripulantes do Changri-lá, cujos corpos nunca foram encontrados. Maria Odete Cardoso de Carvalho, de 68 anos e moradora de Arraial do Cabo, é uma das familiares que hoje recorrem à Justiça. Ela é neta do navegador mestre do Changri-lá, José das Costa Marques, e sobrinha de Zacarias da Costa Marques, que tinha 17 anos quando foi morto pelo ataque alemão.
Carvalho conta à DW Brasil que, pelo relato de parentes, a vida de sua avó “acabou ali”, junto com a morte do marido e do filho. “O Zacarias não queria ter ido nessa viagem, mas minha avó o obrigou a ir pescar. Depois do naufrágio, ela ficou praticamente louca. Se sentiu culpada pela morte do filho e o sofrimento foi muito grande. Foi como se a família tivesse perdido três pessoas”, diz.
Ela relata que, se a indenização vier, irá “ajudar muita gente”, mas, para ela, não fará muita diferença para reparar a dor. “Tinha que ter vindo lá atrás. A história vai passando, e a tristeza é grande. Enquanto eu lembrar da minha avó, nada vai acalmar”, diz.
Paulo Silva Soares da Cruz, de 70 anos e também morador de Arraial do Cabo, é enteado de Deocleciano Pereira da Costa, morto no ataque e cuja família é a autora da ação na pauta desta quinta-feira no Supremo. Ele conta que, até o final da vida, seu avô não acreditava que Costa havia morrido e que, quando ouvia notícias de naufrágios no litoral brasileiro, viajava até outros estados, como São Paulo ou Santa Catarina, para obter mais informações. “Numa dessas viagens, ele pegou uma pneumonia e morreu”, diz.
O problema jurídico
O principal obstáculo para as famílias serem indenizadas é o respeito ao conceito de soberania, segundo o qual cada Estado tem jurisdição apenas sobre o próprio território. Dessa forma, o Brasil não teria poder para condenar a Alemanha a pagar uma indenização a essas pessoas.
Em alguns casos, a Justiça brasileira admite exceções à imunidade de outro país, como em processos civis ou trabalhistas. Mas há um entendimento de que o ataque de um Estado a outro durante guerra é uma decisão protegida pela soberania. Esse raciocínio foi usado em uma decisão de 2013 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que negou o direito à indenização para os familiares das vítimas do Changri-lá.
A Procuradoria-Geral da República tem a mesma posição. Em parecer enviado em 2017 ao Supremo sobre o caso, o então procurador-geral da República, Rodrigo Janot, afirmou que um Estado estrangeiro que pratica um ataque no contexto de guerra está exercendo sua soberania e, portanto, não se submete à jurisdição do Estado brasileiro.
Segundo Janot, ignorar barreiras processuais em um caso como esse para condenar a Alemanha levaria a “inúmeras demandas individuais por prejuízos, tornando obsoletas as soluções políticas há muito tempo adotadas”. Ele lembra que “também o Brasil certamente foi responsável pela morte de civis inocentes” durante guerras.
O advogado Luiz Roberto Leven Siano, que representa os familiares das vítimas do Changri-lá, tem outra visão. Para ele, a imunidade de um país tem limites e deve ser afastada quando o ato violar direitos humanos e ocorrer fora de seu território.
“Respeitamos a imunidade de jurisdição, mas este caso é uma exceção à regra: trata-se de uma violação de direitos humanos – o Changri-lá não era uma embarcação de guerra – e o fato foi praticado em território brasileiro”, afirma. Ele argumenta que algumas nações, como a Argentina, estabelecem que, para atos cometidos no seu território nacional, não há imunidade de jurisdição para outro países.
Leven Siano atua no caso desde 2001, quando foi nomeado advogado dativo – custeado pelo governo, para pessoas sem recursos – para representar os familiares das vítimas do naufrágio na Justiça. “Os descendentes das vítimas são muito pobres. Alguns são pescadores, as mulheres têm profissões humildes. Não teriam condições de patrocinar qualquer tentativa de processo na Alemanha”, afirma.
Ele moveu ações em nome de 88 familiares, alguns dos quais já mortos, de sete famílias diferentes. No processo de Deocleciano Pereira da Costa, a indenização pedida é de R$ 1 milhão para cada familiar que figura como autor no processo. Há dezenas de outros processos semelhantes suspensos aguardando o desfecho no Supremo.
A Alemanha não apresentou contrarrazões ao processo no Supremo e não constituiu advogado. Quando a ação estava no STJ, o país europeu reafirmou a sua imunidade à jurisdição brasileira nesse caso. A DW Brasil entrou em contato com a Embaixada da Alemanha no Brasil, que não se manifestou.