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Bigonha: “O que é que a baiana tem”?

O artigo “O que é que a baiana tem” ? é de autoria do Subprocurador-Geral da República, atua na 2a. Seção do Superior Tribunal de Justiça, proferindo pareceres em Direito Privado, Antonio Carlos Bigonha. Além disso, é compositor, pianista e mestre em Música pela Universidade de Brasília. Foi presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (2007/2011) e coordenador da 6a. Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais da PGR (2019/2021).

“Quando Dorival Caymmi desembarcou do navio “Itapé” na capital do Brasil, o Rio de Janeiro, em 4 de abril de 1938, tinha a intenção de estudar Direito e de tentar uma carreira como artista. Com o dinheiro contado, obteve de imediato uma colocação no rádio, o ambiente propício, àquela altura, para despertar a atenção do grande público e dos produtores fonográficos. Adaptado rapidamente ao meio, graças a uma carta de apresentação de Assis Valente, no 2º semestre daquele ano já se apresentava regularmente nas emissoras da Capital, como a Rádio Nacional, Tupi, Mayrink Veiga e a Transmissora. Um ambiente frequentado por gente de expressão como Catulo da Paixão Cearense, Dircinha Batista, Mário Lago, Braguinha e Ciro Monteiro.

E por Carmen Miranda, a quem foi apresentado já em outubro, para uma audição do samba “O que é que a Baiana Tem?”. É que Ary Barroso, compositor predileto de Carmen, recusara a proposta do cineasta norteamericano Wallace Downey para a utilização do samba “Na Baixa do Sapateiro” na trilha do filme “Banana da Terra”. O novato Caymmi, recém chegado à Capital, aceitou sem pestanejar um cachê mais modesto pela cessão dos direitos autorais, o que acabou abrindo-lhe definitivamente as portas para o sucesso nacional e internacional. Foi um ponto de inflexão na vida da cantora e do compositor que também deixou marcas profundas na cultura brasileira.

Carmem incorporaria para sempre o personagem, descrito em detalhes por Caymmi em seu samba, que faria dela, logo a seguir, uma das artistas mais bem pagas de Hollywood, de todos os tempos.

Eric Hobsbawm afirma que uma das principais estratégias discursivas na construção da identidade nacional é a invenção de tradições. E cita os protocolos cerimoniais da monarquia inglesa, considerados por todos como exemplo de práticas antigas e vinculadas a um passado imemorial, mas que datam, na verdade, do final dos séculos XIX e XX. Houve, nesse sentido, uma geração de intelectuais e artistas brasileiros que, no início do século passado, logrou inventar um novo Brasil, que almejava ser livre das relações sociais assimétricas impostas pela ocupação colonial européia nos séculos antecedentes, notadamente a escravidão e o genocídio indígena. É neste contexto que podemos interpretar a figura feminina negra e mítica descrita por Caymmi, dotada de uma nobreza que é a própria Bahia. Forja ali o mito de ser baiano, disputando com o mineiro Ary Barroso não apenas a contratação de um samba, mas a própria narrativa da importância da matriz baiana no modo de ser brasileiro.

Na década de 1930, é preciso lembrar, o Brasil ainda adotava a eugenia como estratégia de gestão demográfica. A Constituição de 1934 previa expressamente, em seu artigo 138, o estímulo a uma educação eugênica. Getulio Vargas, em seus discursos em defesa do Estado Novo, no final dos anos 30, reafirmava frequentemente a importância de estimular a imigração europeia, e a miscigenação, para o embranquecimento da população. Nada mais congruente, portanto, que a imagem da baiana, inserida no longa- metragem “Banana da Terra”, ganhasse fama internacional na voz e na pele alva de uma brasileira e, o que é mais especioso, nascida no distrito do Porto, em Portugal. Uma personagem negra, em sua origem, que seria imaginada pelo público mundo afora a partir da performance de uma cantora branca. Mas, para Caymmi, não era branca: era a negra de saia, a preta do acarajé, a mulher do amendoim que tinha os seus balangandãs, isto é, que experimentava a emancipação econômica após a abolição do escravismo no país.

Daí o seu esmero em descrever uma indumentária luxuosa, vestindo a própria Bahia com a dignidade que o autor aspirava merecer sua terra natal no concerto federativo.

Em setembro de 2003, o Ministro da Cultura brasileiro, cantor e compositor Gilberto Gil, apresentou-se na Assembleia das Nações Unidas, nos eventos preparativos da 56ª sessão da Assembleia-Geral. O convite, formulado pelo Secretário-Geral, Kofi Annan, teve o objetivo de homenagear as vítimas do atentado contra o prédio das Nações Unidas, em Bagdá, ocorrido em agosto daquele ano, no qual morreu o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, o Alto Comissário para Direitos Humanos da ONU. No encerramento da récita, Gil convidou Annan para, juntos, tocarem seu samba “Toda Menina Baiana”, sob o delírio da plateia. Não tenho notícia de algum outro ministro de qualquer outro país que tenha realizado tamanha façanha, não só por ser ao mesmo tempo titular da pasta da cultura, compositor e cantor consagrado dentro e fora do Brasil, mas por reunir todos esses atributos em um espetáculo no plenário das Nações Unidas, com direito a “canja” do próprio Secretário-Geral. Algo comparável às façanhas militares, literárias e políticas de André Malraux, Ministro da Cultura de Charles De Gaulle.

Toda Menina Baiana pode ser interpretada como um diálogo de duas gerações. À indagação de Dorival Caymmi sobre os predicados da Bahia, Gilberto Gil responde com ênfase às belezas e às mazelas do processo civilizatório que nos foi imposto: o primeiro indígena abatido, o primeiro pelourinho, a primeira missa, o primeiro carnaval. Tudo isto, como dizem os versos do samba, proporcionado, com primazia, à Bahia por obra de Deus. Para Stuart Hall, outra estratégia narrativa recorrente na construção da identidade é a afirmação de um mito fundacional. Nesse sentido, Gil situa a Bahia como a gênese do Brasil, a um só tempo menina e mãe da Nação. É realmente notável que um governo legitimamente eleito tenha propiciado uma exposição tão positiva do Brasil no cenário internacional, honrado a tradição de sobriedade e capacidade técnica de nossos diplomatas, desde o Barão do Rio Branco.

Em setembro último, cumprindo o protocolo inaugurado por Oswaldo Aranha, chanceler de Getulio Vargas, o Brasil abriu a 76ª sessão da Assembleia-Geral da ONU. O alerta lançado em nossa fala, a respeito das vantagens do tratamento precoce contra a Covid-19 e dos riscos da vacinação em massa, intrigou o mundo: “a história e a ciência saberão responsabilizar a todos”. Seria o Brasil portador de algum segredo hermético intransmissível?

Confesso que, pelo apreço que nutro pelas instituições, procurei encontrar algum sentido oculto no texto que foi lido na cerimônia. Umberto Eco alerta que todo segredo hermético é um segredo vazio, pelo qual o mundo é reduzido a um jogo linguístico que, por fim, nega à linguagem qualquer poder de comunicação. As poéticas de Caymmi e Gil, ao contrário, apesar de serem expressas de forma concisa, estão abertas a múltiplas interpretações, plenas em significados. Elas nos falam de uma Bahia maternal, de colo morno e acolhedor. E, em sua narrativa genial, já não se distingue o que é a Bahia e o que é o Brasil. Os gênios e os loucos tem em comum, por vezes, serem alvo da incompreensão de seus contemporâneos. É ao tempo, em sua dimensão inexorável, que incumbe a tarefa de distinguir uns dos outros.”