O artigo A CLT e o paradoxo de Getúlio Vargas é de autoria do ex-presidente da OAB de Sergipe, Henri Clay Andrade:
Promulgada em 1º maio de 1943, pelo Decreto-Lei nº 5.452 editado pelo Presidente da República, Getúlio Vargas, a Consolidação das Leis do Trabalho faz 80 anos de vigência e até hoje, apesar de sofrer mais de três mil alterações, cumpre a finalidade de reunir um conjunto de normas jurídicas fundamentais relativas à relação contratual de emprego que ainda consagram direitos básicos imprescindíveis para a proteção do mínimo necessário à dignidade da pessoa humana.
De início, vale ressaltar que a CLT é um marco histórico que contribuiu para efetivar a autonomia do Direito do Trabalho em nosso ordenamento jurídico, cujos princípios e regras passaram a ser aplicados pela Justiça Especializada do Trabalho, que foi instituída dois anos antes, em 1941.
Diante dessa importante inovação jurídica no Direito brasileiro, um novo padrão de direitos sociais e de condições trabalhistas foram inaugurados no Brasil, a exemplo da consolidação do salário mínimo; das férias anuais; do descanso semanal remunerado; da limitação da jornada de trabalho…
O Direito do Trabalho surgiu na Europa, na segunda metade do século XVIII, em virtude da revolução industrial que modificou substancialmente as relações de trabalho e mobilizou grande número de trabalhadores para as cidades onde funcionavam as fábricas.
No final do século XIX, a igreja católica deu importante contribuição para a evolução dos direitos sociais, ao editar a histórica encíclica Rerum Novarum, que pugnava em sua doutrina social a necessidade de proteção da dignidade da pessoa humana nas relações trabalhistas, a fim de combater as precárias e perigosas condições de trabalho; o excesso da jornada laboral; as irrisórias remunerações e as nocivas exposições das pessoas ao trabalho cruel e degradante.
A CLT, documento legal de consagração das leis trabalhistas de proteção dos trabalhadores, é um instrumento civilizatório do regime capitalista. Tem a função social primordial de regular a relação jurídica entre os trabalhadores e aqueles que detêm os meios de produção econômica. É um autêntico estatuto de direitos que antepara a fúria espoliativa do capitalismo.
Contudo, importante frisar que, no Brasil, a Justiça do Trabalho e a CLT foram criadas durante o chamado Estado Novo – período de governo ditatorial – e tinha objetiva estratégia política de estabelecer o controle social da massa de operários que trabalhavam nas fábricas e se organizavam em sindicatos que reivindicavam, com autonomia política, direitos, salários dignos e melhores condições de trabalho.
Ressalte-se que o modelo trabalhista brasileiro, sobretudo a estrutura sindical, foi inspirado na Carta Del Lavoro, de conteúdo fascista, editada pelo governo do ditador Mussolini em 1927, na Itália.
Seguindo os mesmos passos, o então ditador Getúlio Vargas estabeleceu no Brasil semelhante modelo de controle político-social. Desse modo, a promulgação da CLT não representou uma conquista imediata dos movimentos sociais, mas proveio de concessão estratégica de um governo antidemocrático e representante da burguesia brasileira.
Portanto, a CLT surgiu no período de crescente industrialização do país, concebida para conter o movimento reivindicatório dos trabalhadores e eliminar as organizações sindicais autônomas através da oficialização de sindicatos atrelados ao Estado.
Nesse contexto, o governo Getúlio Vargas investiu fortemente para difundir a cultura da conciliação de classes e o culto ao pai dos pobres, para quem os trabalhadores deviam gratidão pela concessão de direitos trabalhistas assegurados na CLT.
A tática política foi alijar da história a real capacidade de organização dos trabalhadores de lutar pelos seus direitos. Uma proposital subjugação que visava a afetar a autoestima dos trabalhadores, ao tempo em que se concedia direitos sociais sem precedentes no Brasil pelas mãos de Getúlio Vargas.
Assim sendo, a CLT permeada de normas de ordem pública que possibilitavam a intervenção do Estado na relação de emprego e nas relações sindicais, surgiu também como instrumento de pacificação dos conflitos trabalhistas em prol da grande transformação econômica e social oriunda da industrialização implementada no Brasil.
A CLT foi o instrumento fundamental para Getúlio Vargas desarticular os movimentos sociais reivindicatórios e proibir a organização sindical independente. Com isso, o Presidente Vargas ampliou e consolidou a sua popularidade, estabeleceu o ambiente necessário para avançar no projeto de industrialização e conquistou as condições políticas para se manter no poder por 15 anos ininterruptos.
No atual cenário, a essência do Direito do Trabalho foi afetada pela Lei 13.467/2017, apelidada de “reforma trabalhista” e pela Lei 13.874/2019, conhecida como “lei da liberdade econômica”. Essas recentes mudanças introduzidas na legislação trabalhista, normas de natureza marcadamente liberal, mitigaram a proteção do Estado nas relações trabalhistas, desconsiderando a disparidade abismal existente na correlação fática entre trabalhadores e empregadores.
Mas o que foi atingido com essas reformas? Bem, isso já é motivo para um outro artigo.