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Barbara Heliodora, Nelson e o Fluminense

​​​Ernani Buchmann é advogado, jornalista,escritor, ex-presidente da Academia Paranaense de Letras. Tem mais de 20 livros publicados em diversos gêneros, desde crônicas e contos até ensaios e roteiros de cinema. É tricolor desde os “40 minutos antes do nada”

Dá-se como certo que o teatro moderno nasceu no Brasil com a encenação da peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943, quando o país passou também a conhecer a verdadeira direção teatral, encarnada pelo polonês Zbigniew Ziembinski.

Porém, a crítica de teatro de cunho profissional só foi inaugurada entre nós 15 anos mais tarde, quando Barbara Heliodora entrou em cena por meio de suas resenhas em jornal sobre as peças em cartaz nos teatros. Muito antes disso, no entanto, nasceu o Fluminense, em 1902, e a vida do clube e a da jornalista estiveram para sempre entrelaçadas. Entre outras particularidades, porque o Fluminense é oúnico clube esportivo brasileiro de proa a aliar sua vocação original de dedicação ao futebol com extensa atividade em esportes amadores, à vida social de prestígio, opatrocínio de espetáculos artísticos em diversos gêneros, o teatro em destaque, e até iniciativas comunitárias.

Um ano antes do surgimento do Fluminense, Oscar Cox, um jovem da aristocracia carioca que retornara de seus estudos na Suíça, trouxe para o Rio de Janeiro a ideia do futebol, materializada em uma bola, algumas botinas e camisas de lã então utilizadas para os jogos. Seu propósito culminou com a criação, em julho do ano seguinte, por 20 entusiastas liderados por ele, do Fluminense Football Club. Cox, não poderia ser diferente, foi o primeiro presidente do futuro tricolor das Laranjeiras.

A partir de 1906 começaram a ser disputados os campeonatos cariocas, com o Fluminense rivalizando com o Botafogo – não este que está aí hoje, dito de “Futebol e Regatas”, mas seu antecessor, “Football Club”. Ainda não havia a seção de futebol de Flamengo, dedicado apenas ao remo. Mário Filho, irmão mais velho de Nelson Rodrigues e que depois deu nome ao Maracanã, escreveu que “até então o Flamengo era um clube de remo metido a besta. Só tinha sessenta sócios que não gostavam de pagar mensalidades”.

Ex-atletas do Flu fazem nascer o futebol do Fla

Foi em 1911 que o rubro-negro aportou no futebol, produto de uma costela do Fluminense. Por alguma desavença interna, dez jogadores do tricolor bandearam-se para o Flamengo. Nelson, um dos mais apaixonados torcedores do Fluminense, que intercalava sua produção dramatúrgica com crônicas sobre a vida no Rio de Janeiro e sobre futebol, não escondia sua curiosidade sobre o que se tinha passado: “Eu gostaria de saber que gesto, ou palavra, ou ódio deflagrou a crise. Imagino bates-bocas homicidas. E não sei quantos Tricolores saíram para fundar o Flamengo. Hoje, nos grandes jogos, o Estádio Mário Filho é inundado pela multidão rubro-negra. O Flamengo tornou-se uma força da natureza e, repito, o Flamengo venta, chove, relampeja. Eis o que eu pergunto: – Os gatos pingados que se reuniram, numa salinha, imaginavam as potencialidades que estavam liberando?”.

Só Nelson poderia escrever a frase que melhor representa a rivalidade entre os dois clubes: “O Fla-Flu nasceu 40 minutos antes do nada”. A expressão “Fla-Flu” foi obra de Mário Filho, imortalizada de tal forma que uma simples menção a ela é capaz de gerar urticárias, suores e tremores em adeptos das duas torcidas.

Estreiam os Carneiro de Mendonça

O futebol, esporte de contato físico, com suas botinadas e seus chutões, não parecia ter futuro frente a esportes mais sofisticados, como o tênis, o remo ou o cricket praticados no Rio de Janeiro. Muitos torceram o nariz para aquela moda vinda da Europa, o escritor Lima Barreto entre eles. Não contavam os detratores com o apelo popular do novo esporte, capaz de ser praticado em qualquer campinho, com ou sem grama, dois chinelos marcando as traves, uma bola de meia ou de borracha a ser espancada por dois grupos distintos de gladiadores.

O Fluminense era fruto do futebol, mas não era um clube popularesco. Mário Filho descreveu bem: “Para entrar no Fluminense tinha de ser, sem sombra de dúvida, de boa família”. A exigência fazia com que as arquibancadas tricolores fossem frequentadas por moças da melhor sociedade, a dedicarem ao futebol uma parte do seu domingo, aberto com a missa pela manhã e fechado com o footing no fim da tarde. O clube sabia cumprir os protocolos da corte, presenteando o público feminino e os clubes adversários com corbeilles de flores. Essa rotina vigorou nas primeiras décadas da introdução do futebol no Rio de Janeiro.

Fluminense, Botafogo, Bangu, Paysandu, América, Haddock Lobo eram os protagonistas da cena futebolística carioca. A determinada altura, os dois times da Tijuca, América e Haddock Lobo ensaiaram uma fusão, o que levou o jovem Marcos Carneiro de Mendonça, do Haddock, a defender a outra camisa. Mas lá não ficou. Em determinado momento, Alberto Carneiro de Mendonça, pai do goleiro, comandou uma dissidência na diretoria do América e levou para o Fluminense aqueles que o apoiavam, a começar por seu filho.

Marcos era jovem, 20 anos, filho de uma família de alta reputação em Cataguases, na Zona da Mata mineira. Com 1,87 de altura, tinha o porte adequado para fazer carreira no futebol. Foi encontrar novos ares no Fluminense, em 1914. Dois anos mais tarde, os tricolores conquistaram o título carioca com ele no gol.

Poucos jogadores brasileiros, em todos os tempos, foram tão elegantes quanto Marcos. Usava um impecável uniforme branco – com o detalhe de que usava na cintura fitas com as cores do clube. Os adversários, principalmente os rubro-negros, zoavam do hábito, dizendo que as iniciais do Flusignificavam Fitas, Fitinhas e Companhia.

O goleiro não se abalava. Foi tricampeão carioca em 1917/18 e 19. A formação do último ano era escalada de cor por todo tricolor, nas ruas, nos trens e nas barcas:Marcos, Vidal e Chico Neto; Lais, Oswaldo e Fortes; Mano, Zezé, Welfare, Machado e Bacchi. É verdade que Chico Neto não jogou a última partida, por contusão, substituído por Othelo. Ora, jogador com nome de personagem de Shakespeare? Seria uma premonição sobre a vocação da futura filha de Marcos Carneiro de Mendonça?

Mera coincidência. Na época, Marcos já estava casado com a jovem poeta carioca, de raízes mineiras, Anna Amelia Queiroz, a quem tinha conhecido seis anos antes, ainda no período de América. Ela tinha, inclusive, traduzido do inglês um livro com regras do futebol – e lançado sua primeira obra poética em 1911. Seguiu sendo americana pela vida afora.

Apaixonada pelo futebol e por Marcos, a ele dedicou um soneto, a primeira poesia de inspiração erudita a saudar um jogador brasileiro de futebol:

PARA MARCOS DE MENDONÇA

Ao ver-te hoje saltar para um torneio atlético

Sereno, forte, audaz como um vulto da Ilíada

Todo meu ser vibrou num ímpeto frenético

Como diante de um grego, heróis de uma Olimpíada

Estremeci fitando esse teu porte atlético

Como diante de Apolo estremecera a draída

Era um conjunto de arte, esplendoroso e poético,

Enredo e inspiração para uma heleconíada

No cenário sem par de um pálido crepúsculo

Tume enlaçaste no ar, vibrando em cada músculo

Por entre aclamações da massa entusiástica

Como um Deus a baixar do Olimpo, airoso, lépido.

Tocaste o solo, enfim, glorioso, ardente, intrépido,

Belo na perfeição da grega e antiga plástica.

Não só Anna Amelia foi arrebatada pelo atleta. Nelson Rodrigues não ficou atrás:“Eis o que eu queria dizer: o meu herói podia ter sido Rui (Barbosa) e foi Marcos de Mendonça. Hoje eu o vejo, de vez em quando. Passa na multidão em violento destaque. Ele sobressai, obrigatoriamente alto, que é, como o “Dedo de Deus”. Foi o meu herói de calções e chuteiras. Enquanto a guerra povoava a Europa dos mortos em flor, Marcos de Mendonça enchia a minha infância”.

Marcos dominou a linha do gol da seleção brasileira nas duas edições realizadas no Brasil, em 1919 e 1922, do Campeonato Sul-americano. Para a primeira, o Fluminense construiu o primeiro estádio de futebol do país com grande capacidade de público (para a época), o Estádio das Laranjeiras. Três anos mais tarde foi naquele palco que o Brasil comemorou também o bicampeonato continental, algo que só voltou a acontecer no fim do século XX.

Ao longo dos anos, os Carneiro de Mendonça fizeram história no Fluminense. Fábio, irmão mais moço de Marcos, foi presidente do clube no início dos anos 1950. Sob sua direção, o Fluminense conquistou o Campeonato Carioca de 1951, com o famoso ‘timinho’ dirigido por Zezé Moreira, onde brilhavam Castilho e Didi, depois bicampeões do mundo na Suécia, em 1958, e Telê, um jogador magrinho, conhecido como “Fio da Esperança”, por marcar gols decisivos e que, muito mais tarde, como treinador, foi campeão brasileiro pelo Flu e mundial pelo São Paulo.

Gil Carneiro de Mendonça, filho de Fábio, foi o maior vencedor da equipe de vôlei do Fluminense e igualmente presidente do clube. Sua primeira esposa, Irene, também foi campeã na modalidade. O primo José Joaquim, filho de Marcos, foi campeão de natação pelo tricolor, em 1941, competindo ao lado de sua irmã Heliodora, antes de ela assumir o prenome Barbara.

Nasce uma estrela

Heliodora nasceu em 1923, da união entre Marcos e Anna Amelia. Levou uma infância privilegiada, entre figuras conhecidas do grand monde da capital da República, como políticos, empresários – e poetas, escritores, jornalistas. Nas rodas que se formavam na residência do Cosme Velho, o Fluminense era representado por pessoas como Coelho Neto, influente torcedor tricolor dos primeiros anos do clube. Um de seus filhos, Emmanuel Coelho Neto, o Mano, tricampeão no antológico time de 1917/18/19, morreu muito cedo, em 1924, depois de se contundir jogando pelo clube. Outro, João Coelho Neto, o Preguinho, foi capitão da seleção brasileira na Copa de 1930, autor do primeiro gol do Brasil na história da competição. Era um multiatleta, praticando à mesma época oito esportes diferentes, do futebol ao atletismo, da natação ao basquete.

Outro mais, Paulo Coelho Neto, foi vice-presidente do Fluminense em diversas diretorias. Escritor como o pai, é autor dos dois primeiros volumes da história tricolor (1902-1968). Ainda houve Georges Coelho Neto, e suas irmãs Zita, Dina e Violeta a fazer parte da vida do clube. A família sempre esteve impregnada de Fluminense.

Coelho Neto, nascido em 1864, no Maranhão, foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a Cadeira nº 2. Autor de prestígio, só exerceu um cargo na diretoria tricolor, ode diretor artístico. Foi depois de uma apresentação da ópera Aída, de Verdi, que a ideia se materializou. Criou, então, as vesperais de arte, a partir de 1921, e defendeu a ideia de que a atividade física deveria ser combinada com a dedicação às artes: “Não devem as agremiações esportivas limitar-se exclusivamente àcultura física, à correção corporal, compondo primores plásticos, modelos de beleza como os da estatuária: sem alma. O homem não é apenas barro que se afeiçoa segundo os moldes mais perfeitos, é principalmente espírito que se deve corrigir e apurar para que o conteúdo corresponda ao seu envólucro (sic), e não sofra, quem admira a forma, a decepção de achar o vazio onde esperava encontrar essência preciosa”.

Foi incentivado por esses pensamentos que Coelho Neto intensificou a parte artística do clube, promovendo a exibição de peças teatrais e os citados vesperais de arte, em que combinava poesia com música, teatro com dança.

O prédio do teatro concebido para abrigar as atividades artísticas, foi inaugurado em abril de 1941. A programação seguiu até o dia 3 de maio, noite em que foi apresentadoum espetáculo variado, contendo o segundo ato da ópera “Madame Butterfly”, de Pucini, protagonizada por Violeta Coelho Neto, e um concerto sinfônico com a orquestra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, executando a “CavalleriaRusticana”, entre outras atrações.

Não sabemos se a filha de Marcos esteve presente aos festejos, ela que se dedicava também a nadar – e aos treinos para competições de esgrima – e estava prestes a receber uma bolsa para estudar em Connecticut, nos Estados Unidos.

O fato é que a veia artística do Fluminense se consagrava com a conclusão do teatro, a unir-se às conquistas esportivas e comunitárias – um ano mais tarde, sob a presidência de Marcos Carneiro de Mendonça, o tricolor mobilizou seus sócios para comprar um monomotor Fairchild, batizado de “Coelho Neto” e doado à Força Expedicionária Brasileira como parte do esforço de guerra. O avião foi entregue aos militares no gramado do Estádio das Laranjeiras, lotado de sócios e torcedores.

O esporte delineia a vida

O ambiente esportivo nunca deixou de fascinar a futura jornalista. Era frequentadora do clube e, depois da inauguração do Maracanã, passou a assistir aos jogos no então maior estádio do mundo, batizado com o nome de Mário Filho após a morte deste, como resultado de uma campanha liderada pelo Jornal dos Sports, dirigido pelo jornalista e amplificada por contínuas colunas de Nelson defendendo a homenagem – Mário tinha sido um defensor intransigente da construção do Maracanã.

Foi lá que Barbara ouviu, ao deixar as arquibancadas, na trágica tarde da derrota shakespeareana do Brasil para o Uruguai, na decisão da 4ª Copa do Mundo, em 16 de julho de 1950:

— Se embaixo das nossas traves estivesse Marcos Carneiro de Mendonça, o Brasil não teria perdido.

Sem levar em consideração algum conteúdo racista ou clubístico – o goleiro brasileiro era o preto Moacir Barbosa, do Vasco – a frase continha a inimaginável frustração da torcida brasileira pela perda de um título tido como ganho antes de o ser. Para a filha de Marcos, aquilo soava como uma homenagem ao pai, o goleiro que, 30 anos antes, tinha sido o maior do Brasil.

É significativo que o próprio Fluminense não tenha esquecido de Marcos Mendonça. Na manhã do domingo, 20 de julho de 2014, o time sub-23 do Flu enfrentou nas Laranjeiras e empatou em 0 x 0 com os ingleses do Exeter City, time que inaugurou a seleção brasileira cem anos antes, em 21 de julho de 1914.

Na partida do século anterior, a seleção, com seu belo uniforme branco com golas e ribanas azuis, venceu por 2 x 0, tendo Marcos no gol. A foto que conhecemos do jogo mostra o campo das Laranjeiras ainda sem arquibancadas na parte oposta às tribunas, com o Palácio Guanabara, a antiga residência da Princesa Isabel, ao fundo.

Cem anos mais tarde, Barbara Heliodora, já com seus 91 anos, acompanhada do jornalista tricolor Pedro Bial, foi escalada para entregar o troféu comemorativo ao vencedor. Com o empate, o Fluminense, cumprindo os ditames da elegância que sempre o diferenciaram, ofereceu o troféu aos ingleses.

O teatro brasileiro chega ao proscênio

Nelson Rodrigues trazia em si o épico. Seu estilo sui generis abusava das imagens hiperbólicas e das metáforas. Era filho da tragédia, consumada primeiro na morte de seu irmão Roberto, assassinado por uma mulher que desejava matar seu pai, Mário Rodrigues, por conta de uma notícia sobre o desquite dela. Ao longo da vida, viveu outras tragédias familiares.

Nascido no Recife em 1912, chegou ainda pequeno ao Rio de Janeiro, no bojo da mudança de Mário Rodrigues e suanumerosa família. Foram morar na zona norte, em Aldeia Campista, mais tarde cenário de dezenas de crônicas dodramaturgo. A Aldeia nunca foi um bairro oficial, era um aprazível ajuntamento de ruas e casas entre Vila Isabel e o Andaraí.

Mário Rodrigues e sua mulher Maria Esther tiveram 13 filhos, vítimas ou testemunhas das seguidas tragédias que se abateramsobre a família.

“Deprimido com a morte do filho”, escreveu o jornalista e escritor Roberto Muggiati, “Mário Rodrigues bebe até morrer, três meses depois. A seguir, na Revolução de 30, a gráfica e a redação da Crítica são empasteladas, o que provoca o fechamento do jornal. Arruinados, os Rodrigues enfrentam anos de fome e tuberculose. Nelson passa longas temporadas num sanatório em Campos do Jordão”.

Nelson resistiu por obra de Roberto Marinho “apenas oito anos mais velho, companheiro de sinuca de seu irmão Mário Filho, e vai trabalhar em O Globo, sem salário. Só em 1932 é efetivado, como repórter. Seu tratamento de tuberculose é custeado por Roberto Marinho. Nelson lhe será grato pelo resto da vida”, narra Muggiati.

Joffre Rodrigues, outro irmão, não teve a mesma sorte: sucumbiu à tuberculose.Décadas depois, Mário Filho morre, em 1966, de um ataque cardíaco, mesmo ano em que desabamentos causados por chuvas intensas no Rio mataram o também jornalista Paulo Rodrigues, um de seus irmãos mais moços, juntamente com a suafamília.

Nelson Rodrigues Filho foi preso político durante anos, sofrendo torturas. Mais tarde, declarou, conforme relata Roberto Muggiati: “Só estou vivo graças ao velho”. Por fim, Nelson, o velho, teve uma filha que nasceu cega, cuja história contou em Memórias – A Menina sem estrela.

Sobre a obra, Barbara escreveu: “O Nelson Rodrigues que encontramos na coletânea Memórias – A menina sem estrela, um torrencial conjunto autobiográfico, é composto por todos os vários Nelson Rodrigues que conhecemos: o repórter, o cronista, o dramaturgo, o nordestino fascinado pelo Rio de Janeiro (e esses são apenas os poucos que no momento me ocorrem), expressados todos por um domínio da língua que cria um estilo pessoal. A observação direta da reportagem, a compacta economia da crônica, a vida e a individualização dos personagens, tudo chega a dar realmente a impressão de simplicidade e despojamento, mas não demora muito para nos darmos conta da elaboração, da cuidadosa escolha da palavra exata, do fluxo cujo ritmo se altera com a tensão do momento retratado.

A tragicidade da visão de Nelson fica esclarecida e justificada com as múltiplas experiências trágicas que ele viveu em sua família, e nos fazem sentir a necessidade premente de tornar a ler sua obra dramática, onde a presença da morte, dos perigos do ciúme e do adultério, das implacáveis conseq u ências de escolhas e atos, explodem nas ações avassaladoras que tanto chocaram leitores e espectadores de há sessenta anos atrás. Deixar à luz do dia verdades que naquele tempo também existiam, mas eram cuidadosamente escondidas, como no empenho da dona de casa vitoriana em lavar quase que diariamente suas cortinas brancas, para que ninguém pudesse ver a fuligem que as enegreciam, ou na poeira que, não podendo ser removida, era cuidadosamente varrida para debaixo dos tapetes, foi a missão do Nelson polemizado, ofendido e humilhado; porém era sua função também deixar transparecer o amor, a cumplicidade, de toda a família, que passavam incólumes pelas grandes dores, e se afirmava com o progresso e as realizações de cada um.

Escritas em quatro meses – fevereiro a maio – de 1967, essas Memórias cobrem cinquenta anos de vida pessoal, familiar, profissional, bem como policial e política; e a fluência do todo, expressada em pequenos parágrafos que podemos ver como tendo a mesma funcionalidade das cenas e dos atos na dramaturgia clássica. Tudo isso nos mostra Nelson Rodrigues como um mestre das letras, no sentido de ter ele uma capacidade mais do que invejável de saber transmitir, pela linguagem escrita, formalmente justa, a sua múltipla visão do mundo em que viveu, e que soube amar e compreender”.

Nelson Rodrigues formou-se jornalista vivenciando a violência noturna do Rio deJaneiro. Aos poucos foi se fazendo cronista, mas vivendo sempre em dificuldades. Ora era a doença, que o obrigava a ficar períodos em Campos do Jordão, ora era a baixa remuneração que obtinha.

Roberto Marinho, protegendo-o sempre que necessário, certa vez comentou com Mário Filho, sobre a situação do irmão. Nelson andava vestindo a mesma camisa por dias seguidos, o que deixava no ar o odor azedo do suor retinente. Nelson justificou-se. Era a fome, disse ele, a exigir que entregasse à família todos os recursos que obtinha.

Não foi por outro motivo, que Nelsonpassou a escrever peças de teatro, sempre retratando a vida da baixa classe média carioca. Estreou com A mulher sem pecado,em 1942, no Teatro Carlos Gomes, com direção de Rodolfo Mayer. O sucesso veio no final do ano seguinte, com Vestido denoiva, a peça que revolucionou o teatro brasileiro, encenada no Teatro Municipal.

Nos anos seguintes o autor seguiu produzindo, nem sempre com bons resultados. A censura o maltratava, os críticos nem sempre elogiavam, o público era reticente. Assim passou as décadas de1940 e de 1950.

Enquanto isso, Heliodora cuidava de suas múltiplas atividades. Entre casamentos e descasamentos, as exigentes tarefas demulher-mãe de três filhas, os estudos acadêmicos e as obrigações da schollar que já era. Além de manter seu gosto pelas atividades esportivas, presenciando diversos gêneros esportivos sempre quepossível.

Então, em 1957, época em que estava sendo encenada a nona peça escrita por Nelson Rodrigues, Perdoa-me por me traíres, a crítica teatral Barbara Heliodora deixou a coxia e tratou de entrar em cena, com o nome que recebeu na pia batismal. Para efeitos civis, era apenas Heliodora Carneiro de Mendonça. A peça de Nelson não passou a fazer parte das preferidas da novajornalista. Diversas vezes ela reportou-se ao talento do dramaturgo tricolor, creditando a ele o surgimento do verdadeiro teatro brasileiro. Mas não o elogiava compulsoriamente.

Nelson, por outro lado, era obsessivo com relação às críticas. Exigia apoio de seus amigos da intelectualidade e do jornalismo.Quando resolvia implicar com alguém, não economizava chumbo. O cronista Otto Lara Resende ficou magoado quando Nelson intitulou sua peça de 1962 de Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária.Talvez uma canalhice de Nelson, fiel à máxima de sua própria autoria: “O brasileiro quando não é canalha na véspera, é canalha no dia seguinte”. A ácida brincadeira deixou marcas no relacionamento de dois ex-grandes amigos.

Barbara Heliodora não se tornou inimiga de Nelson Rodrigues – chegou a assinar em 1968, um manifesto contrário à proibição da peça Toda nudez será castigada pelo Ministro da Justiça, o execrável Luís Antônio Gama e Silva, autor do Ato Institucional nº 5, marco do endurecimento do regime militar, decretado em 13 de dezembro de 1968.

Barbara, além de admirar o talento do autor, também ficou estarrecida, certa vez, pela memória e a criatividade dele. Ao chegar uma noite ao Teatro Maison de France, em 1961 ou 1962, para assistir uma peça de Nelson, foi abordada por ele, curioso em saber como tinha sido o jogo do Fluminense horas antes, no Maracanã. A crítica fez uma análise da partida e, dois dias depois, leu assombrada a crônica de Nelson sobre o jogo, usando as informações que havia recebido dela e como se tivesse estado na tribuna de imprensa naquele dia.

(A propósito, a peça a que Barbara foi assistir no Maison foi O beijo no asfalto, direção de Fernando Torres, em 1961, ouOtto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária, direção de Martim Gonçalves, em 1962).

Quem virou inimigo de Nelson foi Alceu Amoroso Lima, o Tristão de Athayde, que não assinou a nota, ao contrário de grandes nomes do teatro e do cinema brasileiros. O autor jamais o perdoou, transformando-o em personagem permanente de suascríticas.

Uma das crônicas, em que narra um telefonema a Alceu Amoroso Lima em um dia 24 de dezembro, é hilária e merece que se reproduza um trecho:

“Dr. Alceu, é o Nelson Rodrigues. Como vai essa figura?”. Foi de uma larga e cálida efusão: — “Ah, Nelson, acabei de rezar por você”. Tomo um baque. Ele insiste: — “Tenho pedido muito por você”. Aproveito uma pausa e dou o meu recado: — “Vimdesejar-lhe todas as felicidades etc. etc.”. (E eu queria pingar, como no pires de um cego, a moeda da minha oração.) Baixa em mim o tédio: começo a crer que o amigo é uma impossibilidade. A conversa continuou e chegava a ser irreal, quase um pesadelo humorístico. Subitamente, ele suspira: — “Ah, Nelson, você aí nessa lama!”. Exatamente: — lama. Começo a ter medo do resto. Dr. Alceu dizia “lama”familiarmente, como se falasse de uma tia minha, bem idosa e até estimável. Tive a ideia de responder-lhe: — “Minha lama vaibem. E a sua, dr. Alceu?”.

Acabei com aquilo sumariamente: — “Até logo, até logo. Passar bem”. Desliguei e confesso: — com um desgosto do Natal e, até, um tédio retrospectivo do presépio do “Tico-Tico”. Nunca mais telefonei, nunca mais. Mas, ao relembrar o episódio, imagino um mundo em que as senhoras se cumprimentassem assim: — “Como tem passado a sua lama?”. Eis o que o dr. Alceu, na sua imodéstia de santo, não percebe — qualquer um tem seus íntimos pântanos, sim, pântanos adormecidos. É preciso não despertá-los. Mas certos acontecimentos acordam a lama do seu negro sono. Quando isso acontece, a alma começa a exalar o tifo, a malária, e a paisagem apodrece”.

Com Barbara Heliodora os desentendimentos foram pontuais. Elacontou a Liana de Camargo Leão a reconciliação entre eles, depois de algum tempo sem se falarem, na tribuna de imprensa do Maracanã, em um jogo do Fluminense. O cronista, meditativo, elogiou a grama do estádio e confessou candidamente que em alguma geraçãoanterior teria sido um ruminante, porque a grama lhe parecia apetecível.

Nelson morreu em 21 dezembro de 1980, dias depois do Fluminense vencer o campeonato carioca. Em 2006 foi homenageado na Feira Literária de Parati, a Flip, saudado por Barbara Heliodora como “o criador do teatro brasileiro moderno”.

Em 2012, quando Nelson completaria 100 anos de vida, Barbara registrou: “Há sessenta e um anos estreou sua primeira peça, A Mulher Sem Pecado, há cinquenta e nove apareceu o Vestido de Noiva, esta última, mais do que qualquer coisa, o marco claro do nascimento do teatro brasileiro, um teatro que nos fala diretamente, usando a nossa língua. Se Bernard Shaw disse que a Inglaterra e os Estados Unidos eram dois países separados pela mesma língua, podemos aplicar a mesma ideia a Portugal e Brasil, pois o repórter Nelson Rodrigues não só olhos o mundo à sua volta, como também o ouviu e captou a linguagem do dia a dia. Carioca por adoção, Nelson teve mais oportunidades de conhecer a variedade da vida do Rio do que a maioria de nós, graças à sua carreira de jornalista, de repórter observador de tudo o que viu nas ruas, nos distritos policiais, nos estádios; tudo o que via e ouvia era para ele material a ser usado por sua criatividade, e seu ouvido de repórter não pode deixar de ter pesado, e muito, para a autenticidade de seu diálogo.

Mas, é claro, havia em Nelson o indispensável talento para que ele fizesse tão bom uso do que via e ouvia, e ele pode bem ser chamado de poeta da Zona Norte, porque transparece, tanto em suas duas peças iniciais, quanto em todo o grupo chamado de ‘tragédias cariocas’, a intensidade do afeto que ele sente pelo mundo que retrata e aceita, por suas riquezas em qualidades e defeitos. É esse amor ao humano que mais enriquece a obra dramática de Nelson Rodrigues; em todo personagem que cria ele vê um irmão, a quem ama mesmo sendo falível, ou talvez seja por isso mesmo que ele mereça tanto a solidariedade do autor.

A figura de Nelson Rodrigues, com seus cem anos, reconforta e fortalece o moderno teatro brasileiro, que nasceu com ele, e que nestas comemorações começa a sentir que tem uma história; se no momento se multiplicam as montagens de seus textos, e sem dúvida no futuro ele continuará a ser montado, pois é em suas peças, mais do que em qualquer outra manifestação, que podemos ter uma memória viva daquele tempo passado em que o Brasil, que estava começando a quere conhecer a si mesmo, teve a sorte de encontrar um talento disposto a fazer do teatro aquele “espelho da natureza” de que fala Hamlet. Para com Nelson Rodrigues, todos aqueles que fazem do teatro sua vida têm uma imensa dívida de gratidão, por ter aberto o caminho e deixado obras que continuam vivas e apaixonantes”.

Barbara Heliodora entre os maiores

O Fluminense alinha entre seus torcedores centenas de personalidades do mundo do entretenimento e da informação – cinema, teatro, música, jornalismo, TV e rádio, a exemplo de Ana Paula Araújo, André Trigueiro, Artur Moreira Lima, Cartola, Chico Buarque, Cicero Mello, Fernanda Montenegro, Fagner, Gilberto Gil, Irineu Tamanini, Ivan Lins, Januário de Oliveira, Jô Soares, José Carlos Araújo, Luiz Carlos Jr., Luiz Carlos Miele, Mário Lago, Merval Pereira, Nelson Motta, Octavio de Faria, Paulo Ricardo, Paulo Tapajós, Pedro Bial, Radamés Gnatalli e Tom Jobim, além de célebres juristas, desde Luiz Gallotti até o atual ministro do STF, Luiz Fux.

Entre eles, Marcos Carneiro de Mendonça, Henrique Maximiano Coelho Neto e Nelson Falcão Rodrigues foram nomes de muito destaque no Brasil do século XX, no esporte, na literatura, no teatro, na crônica.

Já Barbara Heliodora Carneiro de Mendonça foi a maior crítica teatral do país, profunda conhecedora da obra de Shakespeare e dos maiores autores do teatro de todos os tempos. Foi tricolor a vida inteira e, no dia em que seu corpo foi cremado, homenageada com um minuto de silêncio antes de um Fluminense x Botafogo, no Maracanã.

Quatro seres humanos diferenciados, unidos pelo esporte, pela arte, pelo gênio e, como poderia afirmar William Shakeaspeare, atlast but not least, pelo Fluminense.

Bibliografia

Barbara Heliodora – ensaio de Liana Camargo Leão

Fla-Flu …e as multidões despertaram – Nelson Rodrigues e Mário Filho – organizado por Oscar Maron Filho e Renato Ferreira – Edição Europa, 1987

História do Fluminense – Tomo I – Paulo Coelho Neto – edição do FFC, 1952

História do Fluminense – Tomo II – Paulo Coelho Neto – edição do FFC, 1969

Nelson Rodrigues – O amor pelo buraco da fechadura – Roberto Muggiati, in Revista da Academia Paranaense de Letras nº 71, 2021

O Anjo Pornográfico – A vida de Nelson Rodrigues – Ruy Castro – Companhia das Letras, 1992

O negro no futebol brasileiro – Mario Filho – Editora Civilização Brasileira, 1964