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Contraditórios poucos conhecidos

Por Montezuma Cruz, de Porto Velho (Rondonia)

Mesmo tendo iniciado no Direito trabalhando no escritório do notável jurista Evandro Lins e Silva, no Rio de Janeiro, de postular uma imprensa livre e lutar pelo estabelecimento do Estado de Direito, o advogado acreano Odacir Soares Rodrigues teve contraditórios pouco conhecidos. Embora tenha sido um período jornalista no Rio de Janeiro, deixou de apoiar colegas em Rondônia. Poderia fazê-lo, pois mantinha sua influência sobre diversas situações na Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil em Rondônia. Censura e perseguição à imprensa, por exemplo.

Antes do Natal de 1979, período de grandes desafios à democracia e de afirmação do então moroso Poder do Judiciário no ex-Território Federal de Rondônia, a Polícia Federal determinava a apreensão do breve jornal mensal Barranco, “por atentar contra o moral e os bons costumes”.

Tão logo os seis mil exemplares empacotados desembarcaram do voo da Vasp procedente de Goiânia, agentes da PF foram às bancas do centro da cidade, recolhendo menos de quinhentos exemplares. A maior parte dos pacotes foi guardada em casa por amigos mobilizados pelos editores.

Odacir e a OAB rondoniense, naquele período presidida pelo advogado Francisco Arquilau de Paula, teriam certamente o holofote que lhes fariam brilhar ainda mais na ribalta política nacional. Os dois eram donos de uma banca no Centro de Porto Velho.

Barranco, jornal de breve circulação em Rondônia, defendia minorias e surpreendia com o conteúdo
Odacir tinha pretensões políticas, Arquilau não. Odacir ainda tinha contas a acertar com o regime militar, pois fora exonerado do cargo de prefeito nomeado, pelo coronel de Exército Humberto da Silva Guedes, tão logo este assumia o Governo de Rondônia, em 1975.

Do jornalista Lúcio Albuquerque, em 2019, após o falecimento do então ex-senador Odacir: “Prefeito duas vezes de Porto Velho, Odacir sempre falava ter sido em sua gestão (a primeira, em 1971) que o município adquirira uma usina de beneficiamento de asfalto, até pouco tempo instalada numa área na esquina das avenidas Tiradentes com Rio Madeira. Outra obra surgida, já em sua segunda gestão, em 1975, foi a criação da Fundacentro, substituída depois pela UNIR, e sempre ele falava disso. Duas boas ações, mas até ser louvado, como andei vendo em alguns sites, na condição de “mito”, isso é um pouco demais.”

No caso do Barranco, a conhecida vaidade pessoal de Odacir daria preferência a “questões maiores”. Ademais, a pressão exercida pelo bispo católico coadjutor, dom Antônio Sarto, poderia ter influenciado a Seccional. O religioso acusava abertamente o jornal “por ser pornográfico”, quando na realidade o Barranco trazia de tudo um pouco em suas páginas. Fotos de crianças e adultos favelados desmascaravam “a preocupação com o social.

Jornalista Barbosa Lima Sobrinho, presidente da ABI, publicou nota de apoio ao jornal
Talvez a OAB-RO se posicionasse, caso o assessor jurídico do jornal, advogado Agenor Martins de Carvalho, a provocasse. Mas Carvalho estava tão às voltas com suas ações no campo fundiário urbano e rural que lhe faltou tempo para tomar a devida atitude.

O senador piauiense Petrônio Portela, nada mais do que o ministro da Justiça do País, o “engenheiro da abertura política” no período do general-presidente Ernesto Geisel foi quem editou a liberação do jornal para continuar circulando regularmente em Porto Velho.

Portela tomara a decisão com base na hecatombe da censura prévia que já vinha de algum tempo, sem ter recebido uma só queixa ou denúncia da OABRO.

Três dias depois exibíamos ao público porto-velhense o apoio da Associação Brasileira de Imprensa (ABI): uma nota assinada pelo corajoso e lendário Barbosa Lima Sobrinho estranhando a atitude da PF. A própria ABI, irmã de luta do Conselho Federal da OAB na resistência ao regime ditatorial, não silenciava.

O Barranco, pobre diabo entre os jornais alternativos do norte brasileiro, arranjou um meio de circular, fazendo valer o lema de sua quinta edição, em latim: “Se bobearis, enrabatus éris” [“Se vacilar, será enrabado”].

Com a ordem da PF nas mãos, mas com o coração embalado, este repórter reuniu-se com o outro editor, Jorcêne Martínez, e ambos saímos a pé pela Avenida 7 de Setembro, entre o Café Santos e a Feira do Km 1, distribuindo aquele que estava proibido de circular.

À noite, last but not least, fomos diretamente ao Bairro do Roque onde o Barranco circulou entre ambulantes, prostitutas, garimpeiros e outros frequentadores da zona boêmia.

Tão corumbaense quanto Jorcêne Martínez, o sul-mato-grossense jornalista Euro Tourinho um dia confirmava a este repórter: “O Odacir muitas vezes quer ditar a notícia e a própria manchete do Alto Madeira (centenário jornal extinto em Porto Velho), foi ingrato conosco, mesmo apoiado em editoriais, mas ouvia quieto a minha ponderação quanto aquele jeito mandão.”

Já no ano seguinte, 1980, arrepiado com o terrorismo militar contra sindicatos, sedes de instituições, entre outros, o advogado Odacir se recompunha da falha viajando para o Rio de Janeiro, onde um atentado a bomba matava a secretária do Conselho Federal, Lyda Monteiro da Silva, aos 59 anos.

Em 27 de agosto de 1980, ela abria uma correspondência enviada anonimamente à sede da instituição. Segundo se apurou naquele período, a bomba era endereçada ao presidente do Conselho Federal da OAB, Eduardo Seabra Fagundes.

Ministro da Justiça Petrônio Portela, o “engenheiro da abertura política brasileira”, mandou suspender a apreensão feita pela PF
A presença de Odacir no Rio honrava os advogados de Rondônia, território que só não o viu defendendo o Barranco contra vorazes admiradores dos censores que abalaram o País quando se instalaram nas Redações nos anos 1970 e cuja função vinha caindo pelas tabelas no apagar das luzes do regime de exceção.

Não há como não falar de Petrônio Portela às novas gerações de advogados de Rondônia. O jornalista Ricardo Westin, da Agência Senado, analisou seus grandes feitos de homem público:

A morte do senador Petrônio Portela, 40 anos atrás, deixou a redemocratização do Brasil em suspenso. De forma inesperada, ele morreu em 6 de janeiro de 1980, aos 54 anos de idade, vítima de um ataque cardíaco. A ditadura estava no meio de um delicado processo de desmonte. Cabia a Petrônio desde 1977, em nome do regime militar, negociar com a sociedade, a oposição e até políticos governistas os termos dessa transição e, assim, viabilizar a volta da democracia.

Todas as medidas de abertura tomadas até então tinham as digitais de Petrônio: a derrubada do abusivo Ato Institucional 5 (AI-5), a volta do habeas corpus para presos políticos, o fim da censura, a proibição da cassação arbitrária de políticos, a reorganização do movimento estudantil, a anistia dos adversários do governo encarcerados ou exilados e o fim do bipartidarismo. Para o processo ser concluído, porém, faltavam os últimos e decisivos passos: as eleições diretas, a saída dos militares do poder e uma nova Constituição.

Há 40 anos, o Brasil ficou com medo de que, sem mais contar com a ação política de Petrônio, o governo do general João Figueiredo não resistisse à pressão da linha dura e a redemocratização acabasse sendo empurrada para um futuro distante ou até mesmo abortada.

Petrônio Portella tornou-se senador em 1967, eleito pelo Piauí. Documentos históricos guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que, apesar de pertencer à Arena (partido governista) e ser alinhado aos generais do Palácio do Planalto, ele insistia, em seus pronunciamentos, que o regime militar era temporário e que a democracia precisava ser retomada. Mas fazia isso, claro, sem atacar os governos dos quais fazia parte.

– Não vou negar, aqui da tribuna, que as instituições estão sob controle. Longe ainda estamos do caminho da democracia – declarou ele, em tom de lamento.

– Vivemos momento de excepcionalidade. Não modelamos na plenitude o nosso sistema político, já aperfeiçoado, mas ainda por tomar a forma definitiva, em que a segurança se concilie com a liberdade — afirmou em outra ocasião. – O Ato Institucional número 5 é transitório, como transitório é o processo de qualquer revolução – disse.

Da mesma forma, o senador nunca disfarçou o incômodo diante das violências praticadas pela ditadura. – Sinto indignação — discursou ele, depois que policiais invadiram a Universidade de Brasília (UnB) para espancar e prender estudantes. — Mas faço a diferença fundamental entre o governo da República e beleguins policiais que desobedecem às autoridades e exorbitam nas diligências. Sua Excelência [o presidente Costa e Silva] fica com a nação, que pede providências e se solidariza com os estudantes, injustamente pisoteados pela política.

– Digo de forma frontal, sem subterfúgios: tanto sou contra a violência daqueles que querem regimes totalitários como sou contra a violência daqueles que, detendo o poder, dele abusam. Esta, a minha norma — respondeu a um senador do MDB (partido da oposição) que o acusara de ser crítico da violência dos “subversivos” e complacente com os abusos do governo.

Petrônio Portella presidiu o Senado duas vezes, em 1971-1972 e 1977-1978. Foi no último período que ele alcançou o posto de negociador da abertura. O presidente da vez era o general Ernesto Geisel, que havia chegado em 1974 com o plano de iniciar a “distensão” (como ele chamava a abertura do regime). Para ajudá-lo na missão, convocou Petrônio.

Era uma missão difícil, mas não impossível em se tratando de Petrônio. O senador precisaria dobrar tanto a linha dura (militar e política), que desejava manter a ditadura a qualquer custo, quanto a oposição (MDB e organizações representativas da sociedade), que queria dinamitar o regime militar já.

O presidente do Senado sabia que, diante das circunstâncias, a abertura só se tornaria realidade se fosse feita passo a passo, de forma controlada e com salvaguardas para aqueles que estavam no governo. Eles, afinal, só aceitariam sair do poder tendo a garantia de que não seriam vítimas de revanche. Petrônio, portanto, teria que convencer a linha dura e a oposição a ceder nas suas posições e a aceitar o caminho intermediário.

– Cometem um erro gravíssimo os políticos que tentam forçar as paredes do regime – afirmou o senador, referindo-se à tática oposicionista de confrontar o governo.

– Precisamos ter uma atuação realística. Muitas conquistas haverão de ser pleiteadas, mas que não sejam pelo simples protesto, que em si mesmo é estéril, mas por mensagens, estudos, contribuições.

Geisel identificou no senador do Piauí todas as características de um exímio negociador político: era cordial, não tratava os adversários como inimigos, não enfiava seus pontos de vista pela goela dos interlocutores, ouvia os argumentos contrários, cumpria a palavra dada, era conciliador, agia com pragmatismo. Eram características que ele já deixava transparecer em seus pronunciamentos no Senado.

– Como defensores da política do presidente Ernesto Geisel nesta Casa, caber-nos-á ir aonde nos chamarem para a discussão os nossos nobres adversários [do MDB]. Divergentes, com certeza, são os nossos caminhos. Mas cremos nos nossos, e a força das convicções imprimirá autenticidade aos debates, que serão tão fortes e veementes quanto respeitosos — afirmou ele, antes de ser chamado para ajudar no desmonte da ditadura.

Graças à intercessão de Petrônio Portella, políticos da oposição que estavam na mira da ditadura puderam escapar da cassação.

No caso do senador Leite Chaves (MDB-PR), que fizera um pronunciamento comparando o Exército brasileiro à SS nazista, Petrônio convenceu-o a discursar logo em seguida derramando-se em elogios ao Exército. No caso do presidente nacional do MDB, deputado Ulysses Guimarães (SP), que redigira uma nota pública comparando o general Geisel ao ditador africano Idi Amin, o senador correu ao Palácio do Planalto e conseguiu aplacar a ira do presidente.

Outro jornal apreendido em Rondônia foi O Combatente, publicado pelo jornalista Inácio Mendes durante um período dos anos 1970. Panfletário, Inácio “arrumou para a cabeça” ao se manifestar com irreverência e ousadia contra os costumes da sociedade porto-velhense que, a propósito, tinham seus pecadilhos a exemplo de outras grandes capitais e cidades brasileiras.

O falecido historiador Francisco Matias lembra que Mendes fora uma das pessoas presas pelo capitão interventor no período de cassações políticas decretadas pelo Ato Institucional nº 2 (do “Comando Revolucionário”), que vitimou o principal líder da época, o deputado federal médico Renato Medeiros (PSP).

O Combatente publicava na primeira página que o “governador em exercício, todo-poderoso representante da Revolução de 1964 era um veado (homossexual).” Referia-se ao capitão Anachreonte Coury Gomes*, cuja intervenção até hoje não foi esclarecida. Nunca se viu no Governo de Rondônia cópia de sua nomeação.

“Não deu outra: à meia-noite o delegado de polícia Dr. Sebastião Corrêa invadiu a sede do jornal, disparou um tiro para cima, acusou Inácio Mendes de ter feito o disparo e o prendeu por tentativa de homicídio. Qualquer acusação era válida, de comunista a homicida” – contava o historiador.

E assim Mendes foi parar numa cela da 3ª Companhia de Fronteira (atual 17ª. Brigada de Infantaria de Selva), quase à beira da rua, exposto à execração pública. Consta que o jornalista também acusou de crimes e fez zombarias com os irmãos Euro e Luiz Tourinho – este, proprietário de uma empresa de seguros – e com o advogado Odacir Soares.

“Lembro muito bem, quando morava no Bairro do Caiari, na Rua Santos Dumont, 2532, em frente à Praça Aluízio Ferreira: eu tinha um vizinho chamado Inácio Mendes, muito conhecido à época pela defesa ferrenha da democracia, brigando contra os militares. Ele era dono de um jornal que mudava de nome constantemente, toda vez que sofria alguma agressão. Teve o nome de O Combate, O Combatente e algumas vezes ouvia meu pai dizer que só faltava colocar no nome do jornal de O Combatido pelas vezes que sofreu a fúria militar” – afirmava em 2014 ao site Gente de Opinião, Orlando Cavalcante Pereira da Silva Júnior.

“Pois bem, vi um dia, quando seu Inácio limpava um porco que acabava de abater e teve sua casa invadida, sem qualquer autorização judicial, de onde saía arrastado pelo colarinho e jogado em um jipe militar até a sede da 3ª companhia de Fronteira. E não foi a única vez que aconteceu.”

Do sinistro capitão Anachreonte não há um só documento comprovando ter sido designado para fazer a devassa política que fez na Capital do extinto território em 1964.

NOTA
A respeito da intrigante, meteórica e desastrosa presença do capitão pagador de Unidades do Exército Brasileiro na região brasileira prendendo pessoas filiadas ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e outras simpatizantes, este repórter escreveu este texto no Portal do Governo do Estado de Rondônia. Friso que Anachreonte não aparece na galeria de ex-governadores territoriais.