Direito Global
blog

Momento de perplexidade

O ex-presidente do STF e do TSE, ministro José Paulo Sepúlveda Pertence disse, em agradecimento à outorga da Medalha Teixeira de Freitas, que lhe foi conferida pelo Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e de ser saudado pelo ministro Luis Roberto Barroso, do STF, que, em respeito ao apartidarismo desta casa, não desejaria tratar da atualidade brasileira. “Mas, seria hipocrisia calar que estamos vivendo um momento de perplexidade sob os riscos iminentes ao regime democrático no País”.

Lembrou que a história do IAB se tem marcado também, em momentos decisivos do País, pela defesa da liberdade e da democracia. E acrescentou Pertence: ” Já se disse que a democracia é uma obra sempre inacabada, na construção da qual é preciso estar sempre atento, e acreditar que as instituições vencerão os desvarios de certas horas”.

Segue a íntegra do discurso proferido pelo advogado José Paulo Sepúlveda Pertence:

​​Exma. Sra. Presidente do Instituto dos Advogados Brasileiros;

​​Confrades, amigas e amigos que me honram com a presença

1. Ao receber de nossa ilustre Presidente Rita Cortez e de meu caríssimo amigo Sydney Sanches a notícia de que o meu nome fora eleito para receber neste ano a medalha Teixeira de Freitas, a mais alta honraria outorgada pelo Instituto, este, a mais veneranda das congregações de advogados do Brasil – criado em 1823 e que hoje comemora 176 anos de existência –, fui tomado a um só tempo de dois sentimentos: o primeiro, do orgulho de figurar na egrégia relação dos já distinguidos pela comenda; o segundo, do temor de ser incluído entre eles, o que reclama de logo uma oração à altura do recebimento da honraria, da sua tradição e do seu significado, para a qual, ao cabo das décadas vividas, já não sei se a velhice me permite cumprir.

2.​​Satisfazem-me, porém, duas circunstâncias extremamente gratificantes.

3.​​A primeira foi saber que a iniciativa da honraria partiu, perante o Conselho Superior da entidade, do querido amigo Técio Lins e Silva.

4.​​Hoje consagrado advogado, de firmada reputação e de que se orgulhariam dois ilustríssimos familiares seus, notabilizados na mesma senda, a da advocacia criminal: o pai, Raul Lins e Silva, e o tio, Evandro Lins e Silva.

5.​​Do Evandro – quando alçado ele à composição do Supremo Tribunal –, tive a honra de integrar o gabinete como seu assessor jurídico, função ao tempo reduzida a um só bacharel.

6.​​E então pude testemunhar o carinho e a esperança, logo realizada pela carreira, há muito festejada, do advogado Técio Lins e Silva, último dos ex-presidentes do Instituto.

7.​​Devo ainda à direção da entidade um agradecimento pela escolha, para saudar-me nesta data, do hoje Ministro do STF Luís Roberto Barroso, sempre um jurista de escol.

8.​​Conheci Barroso ao fim do seu bacharelado, e estagiário no escritório de Eduardo Seabra Fagundes, ao tempo Presidente da OAB, no biênio em que me coube a Vice- Presidência do Conselho Federal.

9.​​Dele, Luís Roberto Barroso, recebi então sua preciosa monografia sobre o Federalismo, antevisão da sua brilhante obra de doutrina constitucional, enriquecida pela atuação como advogado, sobremaneira pelos trabalhos que, realçando o profissional, fê-lo defensor de um punhado de causas de grandeza republicana e democrática.

10.​​Escuso-me, perante o auditório que me honra, por não me atrever à elegia do patrono da distinção que ora me é outorgada, o grande Teixeira de Freitas, certamente o maior jurista do Império, quiçá o maior civilista de toda a história de nossa doutrina.

11.​​É que não ouso buscar ombrear-me a vários dos agraciados que me precederam: daquelas orações a que logrei ter acesso, além da mais recente, do amigo Hermann Baeta, também, a do mestre, amigo e colega no STF, Eros Grau, que produziu verdadeira e notável monografia sobre a grandiosa figura e a obra de Teixeira de Freitas, jurista incomparável de seu tempo e homem público de grande dignidade.

12. A omissão, da qual me escuso, não me inibe, porém, de manifestar, emocionado, a honra e a satisfação de figurar entre todos os que me precederam na premiação nobilitante.

13. Deles – que as circunstâncias desta sessão não me permitem enumerar todos – realço alguns com os quais pude conviver e aos quais devo o ensinamento colhido de suas obras. Assim, José Afonso da Silva, Fábio Comparato, Barbosa Lima Sobrinho, Paulo Bonavides, Barbosa Moreira, Pontes de Miranda, Aguiar Dias, José Frederico Marques, Orlando Gomes, Miguel Reale, Rui Cirne Lima e Nelson Hungria.

14. Não são muitos os que dedicaram à magistratura tempo significativo de suas vidas, dos quais o imortal penalista Nelson Hungria é um raro exemplar: dele me aproximou Evandro Lins, quando Hungria, já aposentado, se entregou a brava, embora curta, militância de notável advogado.

15.​​Exerci funções públicas de que me orgulho: do Ministério Público do Distrito Federal – da qual me cassou o arbítrio da ditadura – à alta investidura na Procuradoria Geral da República, com a qual a escolha do inesquecível Tancredo Neves me distinguiu, e na qual me manteve o amigo, Presidente José Sarney, que, no último ano de seu mandato, me alçou a Ministro do Supremo Tribunal Federal, posição que jamais ousara pretender, mas a que servi com dedicação exclusiva por quase duas décadas.

16.​​No entanto, permitam-me – na senectude que a vida me concedeu – atribuir a surpreendente distinção que recebo, menos ao gratificante reconhecimento à honradez no exercício dos cargos públicos a que fui chamado, do que à dedicação que empreguei no exercício da advocacia e, nela, à defesa dos perseguidos pelo regime de arbítrio militar, a que o país foi submetido por mais de vinte anos, e a volta do qual muitos nos dizem estarmos novamente ameaçados, fundados no que Lilia Moritz Schwarcz, lúcida cientista política brasileira, caracteriza como signos do autoritarismo:

“A seleção de um processo mítico e glorioso; a criação de um anti-intelectualismo e um antijornalismo de base; um retorno à sociedade patriarcal de maneira a elevar conceitos de hierarquia e ordem; o uso da polícia do Estado ou, se necessário, de milícias para reprimir bandidos mas também desafetos políticos; uma verdadeira histeria sexual que acusa mulheres, gays, travestis e outras minorias de serem responsáveis pela degeneração moral de suas nações; um apelo à própria vitimização (a sua e de seus aliados), conclamando a população a reagir aos supostos algozes de outrora; o incentivo à polarização que divide a população entre “eles” e “nós”, estabelecendo que “nós” somos os realizadores e “eles” os usurpadores; o uso extensivo da propaganda política que não preza a realidade pois prefere inventá-la. A naturalização de certos grupos nacionais e a consequente ojeriza aos imigrantes, logo transformados em estrangeiros; a manipulação do Estado, de suas instituições e leis, visando perpetuar o controle da máquina e garantir um retorno nostálgico aos valores da terra, da família e das tradições, como se esses sentimentos puros, imutáveis e resguardados.”

17.​​Esta é uma das características da onda do autoritarismo de direita, que parte significativa do mundo está a sofrer e da qual são exemplos marcantes de maior ou menor radicalismo, referidos pela autora: na Turquia de Erdogan; na Polônia de Andrzej Duda; na Hungria de Orban e, também, em maior ou menor extensão, na Itália sob Salvini; Duterte nas Filipinas e Maduro na Venezuela, e, o mais preocupante, na maior potência do mundo, os Estados Unidos, sob Trump.

18.​​É patente que todas ou boa parte dessas marcas do autoritarismo de ontem e de hoje, se fazem presentes, neste preocupante início de século, em número crescente de países.
​​
19.​​Aqui também – é triste reconhecê-lo – que nos vimos aproximando perigosamente, no dizer preciso da escritora citada, das características dos governos referidos, ou seja, “à profusão de estratégias comuns”, quando assevera:

“vem se tornando cada vez mais fácil encontrar diversos governos que, sem serem diretamente orquestrados entre si, acabam por dialogar através de seus modelos análogos; uma sorte de populismo autoritário, que vem testando a resiliência institucional das democracias em seus respectivos países”.

20. Antes, durante e depois da ditadura, no exercício profissional da advocacia, fiz parceiros e amigos caríssimos, também preclaros Mestres.

21.​​Desses, não posso olvidar o amigo inesquecível e valioso parceiro em várias lides que foi Antônio Evaristo de Moraes (e seu inseparável companheiro George Tavares), adversário uma só vez, sem perda da estima e da consideração que nos uniu durante toda sua vida.

22.​​E, também, Nilo Batista, professor emérito e agraciado pelo Instituto, que brindou, ao receber a comenda, com um discurso magistral de denúncia do punitivismo, de cuja pregação, ingênua ou irresponsável, somos hoje objeto e vítimas.

23. Também inolvidáveis as recordações da minha militância na OAB, cujo Conselho Federal integrei em anos dramáticos, mas excitantes – as vezes de protagonismo – nos tempos decisivos da luta pelo fim da ditadura e a retomada do processo de democratização do Brasil.

24. Recordando aqueles tempos da OAB, concedam-me lembrar de Hélio Saboia, então Secretário Geral, depois Presidente da Seccional do Rio, que se tornou meu companheiro e memorável amigo, até o fim de sua vida.

25. Na lembrança dos colegas e amigos do colegiado cujos nomes também não me seria possível declinar aqui, permito-me rememorar os membros natos do Conselho Federal – os saudosos Miguel Seabra Fagundes, Aroldo Valadão e Caio Mário – este meu querido professor na faculdade de direito da UFMG – , e, representando todos os conselheiros, os que exerceram a presidência da entidade, nos anos em que representei o Distrito Federal: o grande saudoso Raymundo Faoro, intelectual a quem se deve o antológico Donos do Poder; o meu bravo integérrimo Presidente, Eduardo Seabra Fagundes, que também exerceu a presidência do Instituto, e Bernardo Cabral, meu cordial adversário, vitorioso na eleição que disputamos, e que, depois, de volta à vida pública, construiu valioso currículo.

26.​​Sobre os riscos de retorno da ditadura, mesmo que disfarçada, recorro a um homem público, Milton Campos, das minhas Minas Gerais, em quem não obstante divergências pontuais na vida política, se há de reconhecer um jurista e um homem público notável.

27.​​Invoco sua densa aula inaugural de 1966, na UFMG, sob o título “Em Louvor da Tolerância”.

28.​​Nela – não obstante a redução nominal da conferência às relações da tolerância com a universidade – enuncia observações de todo pertinentes à tolerância como valor essencial do regime democrático.

29.​​Lê-se, nas páginas magistrais de Milton Campos – que Carlos Drummond definiu como “o homem que a gente gostaria de ser” – que “a radicalização, inimiga mortal da tolerância, não costuma estar nas idéias em si mesmas, senão no modo como que se apresentam e no processo pelo qual procuram prevalecer”.

30.​​Lê-se mais, na sua conferência, essa passagem de rara beleza poética:

“As idéias e os juízos, como as árvores mais firmes, têm o seu outono, em que caem as fôlhas. E a intolerância dos radicais se revela mais nas fôlhas efêmeras do que nos troncos duradouros. É o velho vício, inveterado na política, de se lutar pelo acidente, com o esquecimento da essência.”

31.​​Nesse sentido, a tolerância nas controvérsias intelectuais e também nas políticas, é o pressuposto da serenidade, sem as quais – tendo vivido parte irreparável da vida na intolerância – às vezes, imposta pela violência de todas as sortes – sem as quais não se afirmam nem se estabilizam as democracias.

32.​​É o que ocorreu, nos pródromos das grandes guerras do século passado, embora em muitos casos sem êxito, nos quais, para a defesa das democracias, se mostrou imprescindível o culto e, se necessário, a luta pelos valores da liberdade, dos direitos humanos e das instituições fundamentais.

33.​​Desses valores, peço vênia para enfatizar o menos violento, mas, essencial à efetividade da vivência democrática: a tolerância, sem a qual, com a serenidade que a pressupõe, a democracia fenece.

34.​​Vale invocar a respeito a observação precisa de Norberto Bobbio:

“Como modo de ser em relação ao outro, a serenidade resvala o território da tolerância e do respeito pelas idéias e pelos modos de viver dos outros. No entanto, se o indivíduo sereno é tolerante e respeitoso, não é apenas isto. A tolerância é recíproca: para que exista tolerância é preciso que se esteja ao menos em dois. Uma situação de tolerância existe quando um tolera o outro. Se eu o tolero e você não me tolera, não há um estado de tolerância mas, ao contrário, prepotência. Passa-se o mesmo com o respeito. Cito Kant: ‘Todo homem tem o direito de exigir o respeito dos próprios semelhantes e reciprocamente está obrigado ele próprio a respeitar os demais’”

35.​​A propósito, e em respeito ao apartidarismo desta casa, não desejaria tratar da atualidade brasileira.

36.​​Mas a história do IAB se tem marcado também, em momentos decisivos do País, pela defesa da liberdade e da democracia.

37.​​E seria hipocrisia calar que estamos vivendo um momento de perplexidade sob os riscos iminentes ao regime democrático no País.

38. Já se disse que a democracia é uma obra sempre inacabada, na construção da qual é preciso estar sempre atento, e acreditar que as instituições vencerão os desvarios de certas horas.
​​
39. Renovando a gratidão ao Conselho Superior e à direção do Instituto pela outorga da medalha Teixeira de Freitas, e a todos os presentes pela atenção dispensada a estas palavras, muito obrigado.