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Fake News

O artigo Fake News, a liberdade de manifestação do pensamento e seu controle é de autoria do ex-presidente do STF e do TSE, ministro aposentado Carlos Mário da Silva Velloso, e foi publicado no jornal O Estado de S.Paulo:

O Senado aprovou o Projeto de Lei 2.630/2020, o PL das fake news, fixando normas e mecanismos de transparência para os provedores de aplicação de internet (provedores de redes sociais e serviços de mensageria privada), com o objetivo de garantir a liberdade de expressão, comunicação e manifestação do pensamento, estabelecendo, no art. 12, parâmetros a serem adotados pelos provedores nos procedimentos de moderação de conteúdo.

Todavia, o detalhamento excessivo da atividade de moderação conflita com o Marco Civil da Internet e com os princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, inerentes ao devido processo legal substantivo. Ademais, além de transferir aos provedores o ônus decorrente do direito de resposta, que é do ofensor, delega competência aos provedores para a definição de conceitos jurídicos indeterminados e para tipificação de crimes, tarefas que são de Estado.

Conforme o Marco Civil da Internet, os provedores de aplicação possuem autonomia para adoção dos mecanismos de moderação que julgarem necessários aos seus modelos de negócio, a fim de coibirem as fake news, o que fazem de forma globalizada. Não é razoável, portanto, a imposição de regras inexequíveis ou onerosas aos provedores. A modificação radical dos seus modelos de negócio, além de ofensiva à livre iniciativa e à livre concorrência, seria desproporcional.

Não se nega a aplicabilidade, no caso, do devido processo e dos princípios do contraditório e da ampla defesa, que lhe são corolários. Mas o que deve ser considerado é que a moderação de conteúdo não deve estar sujeita a um contraditório prévio. As medidas de moderação reclamam ações imediatas, com a adoção do contraditório diferido ou postergado. Nesse sentido, a jurisprudência do STF, assentada num rol de precedentes, reconhece a constitucionalidade do contraditório diferido em variadas situações, inclusive quando justificada a urgência da medida (v.g. ADI 3.591 e SS 3.490).

Assim, considerada a relevância do interesse público protegido pelo PL 2.630, é razoável que a adoção de medidas acautelatórias, pelos provedores de aplicação de internet, no exercício de seu poder de moderação, independa de um contraditório prévio. É que é preciso afastar, de pronto, o compartilhamento de informações falsas, maliciosas e criminosas, além da circulação de conteúdos violadores às regras estabelecidas pelos provedores de aplicação junto aos seus usuários, regras que vedam, por exemplo, exploração sexual infantil, discurso de ódio, bullying, entre tantos outros graves abusos.

Os provedores de aplicação são produtos da 4ª Revolução Industrial, a revolução dos computadores, dos smartphones, da internet. O ambiente dinâmico em que operam exige a adoção de medidas de moderação imediatas, com o objetivo de coibir a disseminação da falsidade, que se reproduz em proporção geométrica, muita vez por meio de robôs, com conteúdos que desequilibram pleitos eleitorais e arruínam, em horas, a reputação de pessoas e instituições públicas e privadas. A comunicação, que se fazia em horas ou em dias, hoje se faz de forma instantânea e globalizada. A notificação e a defesa prévia do usuário constituem, portanto, medida desproporcional, quando é possível a utilização do contraditório diferido, meio mais eficaz e ajustado ao mundo digital, para a consecução do devido processo legal.

É certo que o PL 2.630 prevê hipóteses nas quais a notificação e a defesa prévia serão dispensadas. Ainda assim o dispositivo é desproporcional, pois não estabelece parâmetros de conduta determinados. Atribui-se aos provedores de aplicação o ônus de definir conceitos indeterminados, além da complexa tarefa de interpretar e aplicar o aparato normativo de proteção aos direitos das crianças e adolescentes e a legislação que tipifica os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, atividades próprias de Estado.

O PL 2.630 impõe aos provedores, ainda, assegurar ao ofendido o direito de resposta. Ora, somente o ofensor pode ser responsabilizado pela adoção dos procedimentos necessários à consecução do direito de resposta. Melhor seria que se adotasse a regra da Lei 13.188/2015, que regulamenta o direito de resposta em matéria publicada por veículo de comunicação social, ou a previsão do art. 58, §1º, da Lei 9.504/97, a Lei das Eleições. Também contraria o ordenamento jurídico ao criar hipótese de direito de resposta sem manifestação de interesse por parte do ofendido.
Certo é que estamos todos empenhados em afastar do mundo das coisas e do direito as fake news e suas nefastas consequências, observadas as garantias constitucionais, mas com a compressão de que o mundo digital não é o mesmo do mundo analógico.