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A Constituição e o Pacto Democrático

O artigo “A Constituição de 1988 e o Pacto Democrático é de autoria da ex-presidente do Superior Tribunal Militar (STM), ministra Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha:

O aspecto marcante da formação do Estado Português é o caráter patrimonialista, característica singular que distingue sua índole e formação política em relação aos demais povos da Península Ibérica. A Pax Luzitana, nos seus albores, devido à forte coesão nacional em torno da figura do rei em face da constante ameaça de desagregação territorial, impediu o Estado Português de estabelecer um ordenamento endógeno para assegurar a soberania no plano político e criar normas reguladoras que regessem as relações privadas entre os indivíduos.

Isso explica o fato de haver sido adotada a Constituição de Diocleciano como estatuto básico do Estado, e o Código de Justiniano como estatuto regulador das relações de ordem privada.

Logo após a expulsão dos mouros pelo direito de conquista, viria o rei a adquirir uma soma de poderes ilimitados, bem como uma supremacia absoluta sobre todas as classes. Senhor da paz e da guerra, era ele o proprietário de todos os bens e pessoas e o titular dos monopólios de exploração das atividades mercantis. Era o que os publicistas de então conceituaram de domínio eminente.

Outra característica singular do processo civilizatório português consistiu na constante aliança do rei com a plebe, a chamada “arraia miúda”, em oposição à nobreza feudal, que jamais conseguiu afirmar-se politicamente como força social que pusesse em perigo a hegemonia do Príncipe.

Esta aliança duradoura impediu a ascensão do feudalismo e abriu caminho a criação dos municípios (cidades e vilas), que se constituiriam na base do poder dominante, dando ensejo à participação popular nos negócios do reino.

O marco inicial das transformações políticas e das lutas entre classes em Portugal inicia-se a partir da Revolução de Avis (1375), com a queda da dinastia Afonsina e a ascensão da dinastia Bragantina.

A Coroa Portuguesa, titular dos bens requengos e regalengos, constituía-se numa fonte de mercês, distribuidora de prebendas. A fim de incrementar os ingressos para o tesouro real, distribuía concessões e monopólios à burguesia comercial emergente, sob a tutela do rei. Dom Manoel, o mercador da pimenta, armou expedições e financiou empresas marítimas, intensificando o tráfico nas rotas das Índias, Veneza e Holanda, onde predominava o comércio do açúcar, o que possibilitou grandes ingressos na receita.

Pode-se dizer que a revolução industrial passou ao largo de Portugal e o processo de acumulação se fez em benefício da realeza. A consequência inexorável desse processo foi o estabelecimento de uma vasta burocracia, civil e militar, sob os auspícios do monarca.

O serviço militar remunerado burocratizaria o soldado, enquanto as serventias, vitalícias ou temporárias, burocratizariam a justiça de El-Rey e a administração pública.

Surge o Estado Cartorário, que deu ensejo ao aparecimento do estamento; uma corporação estratificada e fossilizada, fechada sobre si mesma, que com o tempo irá adquirir autonomia e dinâmica próprias, nem sempre em sintonia com os interesses vitais da sociedade civil.

A ameaça da bancarrota financeira que acometeu Portugal no 2º quartel do século XV em virtude da perda dos mercados do oriente em favor da Holanda, Inglaterra e Repúblicas Italianas, fez com que se abrissem novas frentes de conquista e exploração de outras terras, a fim de estancar a sangria nos recursos parcos do erário. Esta nova frente seria a ocupação da América, válvula de escape, que possibilitou um afrouxamento das tensões existentes entre o rei e a nobreza territorial.

Diante das inúmeras convulsões e tensões sociais ocorridas a partir da Revolução de Avis, e com a formação dos estamentos, o direito romano que constituía a base de todo o ordenamento jurídico do antigo mundo português, com a sua marca autoritária, amenizada em parte pelo direito canônico, converteu-se, na prática, num instrumento inadequado, incapaz de estabelecer um pacto social e político que resultasse numa transação de interesses entre as forças sociais postas em presença.

O Direito, contudo, é imanente aos próprios dissídios da sociedade e, por isso, cria no inconsciente coletivo, mecanismos de arbitragem destinados a dirimir os conflitos. Nesse passo, a esterilização do direito romano transplantado viria, paulatinamente, a ceder espaço e culminaria nas obras de compilação das antigas ordenações, dentre as quais a mais conspícua, sem dúvida, as Filipinas, estenderia a sua vigência até a colônia.

Fato é que, com a perda das Índias, Portugal viu-se obrigado a acelerar o processo de colonização. Buscando aliviar as tensões internas, promoveu a migração da mão-de-obra ociosa para o Brasil usando como chamariz a visão edênica da América, de que dá testemunho a carta de Pero Vaz de Caminha.

A exploração da colônia centrou-se, inicialmente, no pau-brasil, limitando-se à faixa litorânea. Esgotado esse veio e, frustrado o colonizador pela tentativa fracassada de escravização indígena, iniciou-se o ciclo do açúcar graças ao aporte da escravaria africana.

O ciclo da mineração financiado pela metrópole com a formação das Bandeiras, iniciou a conquista do interior, estimulando veleidades autonomistas e criando uma consciência nacional propriamente dita.

O grande êxito econômico alcançado nesta fase consolidou o tesouro real e desenvolveu, no século XVII, o fastígio do estamento burocrático lusitano graças ao terror fiscal dos contratadores do reino.

A par disso, florescia na colônia uma consciência nativista. O processo de autonomia política, deflagrado com a criação das vilas e municípios, tornar-se-ia cada vez mais difícil de controlar, precipitado com a vinda da família real para o Brasil, em 1806, e a ascensão da colônia à condição de Reino-Unido de Portugal. A independência viria da conjugação de fatores os mais diversos, após a retirada dos exércitos napoleônicos da Península Ibérica.

O PERÍODO MONÁRQUICO

​Nos primórdios da vida independente e logo na convocação da 1ª Assembléia Nacional Constituinte, duas tendências antagônicas se delinearam: de um lado, a autocracia do Príncipe, de outro, o jurisdicismo dos Andradas. As tentativas de inserção, na primeira Carta Política da declaração de direitos decalcada do “Bill ofRight” se viram malogradas, gerando um impasse entre o autoritarismo do monarca e o primeiro surto liberalizante emergente no país cujo desfecho foi a dissolução da Constituinte, seguida à outorga, por força do Ato Adicional, da Constituição Brasileira de 1824.
Este momento fatídico marca o início das crises de legitimidade e dos surtos constitucionais que permearam a história institucional brasileira. Premeditada e intencionalmente, a partir de 1823 e, com maior ênfase em 1889, 1930, 1937 e 1964 foi deflagrado no interior do Estado nacional o processo ditatório, de efeitos funestos à democracia e ao funcionamento regular dos mecanismos representativos.

Do Brasil monárquico à renovação republicana processada pela Constituinte de 1988, acumularam-se vícios formais que denotam falhas de eficácia e juridicidade dos instrumentos supra legais ao longo da historiografia pátria. A insubmissão do Colégio Formal da Soberania de 1823, palco do embate entre o autoritarismo real e o ideário liberal professado por eminentes figuras do passado, importaria na extinção do poder de primeiro grau em sacrifício da legitimidade do regime. O Império surge, portanto, no dizer de Paulo Bonavides, como obra de um Príncipe, não de um princípio; forma de governo que perduraria até 1889 com a Proclamação da República.

O PERÍODO REPUBLICANO

A primeira Constituição republicana, sob a influência de Ruy Barbosa, foi decalcada do modelo norte-americano, ao contrário da Carta outorgada em 1824, que se inspirou nas ideias racionalistas francesas.
A Constituição de 1891 consagrou o federalismo e a autonomia dos estados e municípios. Na parte da declaração dos direitos, instituiu o habeas corpus, remédio abrangente que gerou controvérsias no Supremo Tribunal Federal sobre a extensão de sua aplicação; se serviria de amparo a todas as vulnerações aos direitos individuais , ou se limitar-se-ia, apenas, ao constrangimento ilegal na liberdade de locomoção do indivíduo. Consagrou, igualmente, a soberania do júri e a interdependência dos poderes.

Paralelamente, a nascente burguesia brasileira tenta emergir como classe, mas não resiste ao confronto com o bloco oligárquico rural cuja hegemonia era incontestável desde o império. Como bem salienta Nelson Werneck Sodré, “a burguesia brasileira apareceu, tardiamente, no palco da História, quando já se consolidara o capitalismo europeu na fase dos monopólios”.

Assim, logo de início, o processo de industrialização do país encontrou intransponíveis resistências. A tentativa do Ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, de extinguir os subsídios à agricultura viria desembocar no encilhamento. O Barão de Mauá é arrastado à falência. Predominava a teoria econômica das chamadas “vantagens comparativas”, que preconizava para o Brasil um modelo econômico de estrutura fundiária consistente na exportação de produtos agrícolas e matérias primas em troca de importação de manufaturados. O bloco oligárquico havia assegurado, por completo, o controle político.

Para além, as eleições de “bico de pena” constituíam a própria institucionalização da fraude. Usou-se e abusou-se da “degola” com o chamado reconhecimento dos poderes pelo Congresso, dominado por caudilhos do porte de Pinheiro Machado.

​Neste contexto, a República consolidada sob a égide da Carta de 1891 e na qual se consagrou os direitos e garantias individuais, a forma federativa, o presidencialismo e a separação tridimensional dos poderes desvirtuar-se-ia, mergulhando o Estado numa ditadura confessada em seus instrumentos de execução autocráticos. A técnica escorreita da Lex constitucional não guardaria, pois, correspondência com a realidade, como bem exemplifica o frágil sistema partidário que, longe de exprimir a vontade nacional, viabilizou a articulação de uma política clientelista e excludente, consagrando “uma desigual e injusta federação de oligarcas”.

Por seu turno, a reforma da Lei Maior deflagrada em 1926 revelar-se-ia tardia e inócua para salvar a Velha República, solapada em seus fundamentos.

À Revolução de 1930 coube restabelecer a legitimidade do regime e forjar o arcabouço normativo que institucionalizasse a nova ordem nos termos do liberalismo clássico e republicano de 1891. Com o seu advento a oligarquia sofreu um duro revés, mas, não foi uma vitória completa. Este movimento revolucionário trouxe à sua ilharga as mais variadas correntes de opinião que se formaram no Brasil: liberais, anarquistas, socialistas, positivistas e até mesmo conservadores de Minas Gerais.

Precedia a Revolução de 30 os primeiros movimentos populares: a greve dos gráficos em São Paulo, a fundação do Partido Comunista do Brasil em 1922, e o movimento tenentista de ideologia difusa.

Contudo, a reconstitucionalização seria procrastinada em nome da concretização de metas intervencionistas do Estado na ordem econômica, nas relações trabalhistas e em outros domínios da sociedade, dando ensejo a Insurreição de São Paulo de 9 de julho de 1932 que levantou aquele estado-membro em armas contra o poder central para reclamar o retorno da legitimidade: antevisão dos desígnios perpetuístas do titular do poder executivo federal. Sufocada pela esmagadora superioridade militar da união, a Revolução Constitucionalista de 1932, triunfaria em seus propósitos ao forcejar a convocação da Assembleia Nacional Constituinte e a consequentedissolução do governo provisório, marcando o início da segunda República.

A Lex Fundamentalis de 1934 , “atualização teórica e doutrinária do princípio democrático”, testemunhou o realinhamento ideológico das potências europeias no cenário mundial e a ascensão de ideias e valores autoritários ensejadores de novo conflito armado.

As marcantes transformações na conjuntura internacional, cujos reflexos se fizeram sentir ao longo da história brasileira, reforçaram o desgaste dos princípios liberais concebidas como um produto estrangeiro, inadaptável à tradição institucional do país e, em tudo, incompatível com o perfil corporativo e intervencionista do Estado Novo, simbolicamente representado pela figura carismática e populista do Presidente Getúlio Vargas.Regime de exceção, inspirado no fascismo e no nacional-socialismo, teve por sustentáculo jurídico a Carta outorgada em 1937, decalcada da Constituição polonesa ditada pelo General Pilsudski.

Ironicamente, seu texto não chegou a ganhar vigência por estar condicionada, nos termos do artigo 187, a uma consulta plebiscitária que jamais se realizou. Primou, pois, inconteste, a vontade do ditador, despojada de qualquer controle jurídico, mesmo o de uma norma espúria, que, alfim, nunca existiu, caracterizando-se o Estado Novo varguista como um governo de fato.

A restauração legitimada pela Lei Fundamental de 1946 principiou o interregno democrático, rompido em 1964. Precedida pela derrota do nazi-fascismo e pela recuperação ideológica do democratismo nos Estados do ocidente, ela pôs fim ao impasse institucional brasileiro, atualizando o direito público aos novos contornos do pós-guerra.

Inegavelmente, a terceira República retomaria a doutrina liberal ao assegurar direitos e garantias individuais exercitáveis por meio de writs constitucionais, bem como ao respaldar a liberdade de associação e a livre manifestação do pensamento.

Em que pese o vezo da marginalização política do povo brasileiro – negação do direito de voto aos analfabetos e praças de pré – pela Carta de 1946 restabeleceram-se as garantias individuais consistentes na plenitude do habeas corpus, do mandado de segurança, do direito à livre manifestação do pensamento e da liberdade de associação. O direito de greve foi alçado à garantia constitucional.

​Restabeleceu, outrossim, o princípio federativo, pelo reconhecimento da autonomia dos estados-membros, dotando-os com recursos próprios com o propósito de criar um sistema de equilíbrio de poderes em relação à união.
​No âmbito dos poderes federais impôs eleições diretas, com mandato de cinco anos para presidente e vice-presidente da República; restaurou as prerrogativas do legislativo e sua forma bicameral; alargou a competência do judiciário e ampliou as prerrogativas dos magistrados que passaram a gozar de vitaliciedade no cargo, irredutibilidade de vencimentos e inamovibilidade. No capítulo referente à ordem econômica e social, procurou conciliar o princípio da liberdade de iniciativa com o da justiça social. Em suma, uma carta de intenções da ortodoxia liberal que não honraria a efetividade dos seus dispositivos.

​De fato, a garantia ao direito de propriedade condicionada ao bem-estar social, tinha como contrapartida óbices intransponíveis à promoção da reforma agrária, pela exigência da desapropriação com prévia indenização em dinheiro.
​Ademais, as contradições do velho liberalismo representado pela Constituição de 1946, em face dos reclamos progressistas, logo se fizeram sentir. A política econômica do livre cambismo posta em prática no governo do Presidente Eurico Gaspar Dutra – 1946 a 1949 – exauriu as grandes reservas cambiais do país produzidas pelo esforço de guerra, provocando a transferência de renda em favor do comércio importador.

​Contudo, foi sob a égide da “guerra fria”, quando o conflito ideológico de proporções inéditas dividiu o mundo em dois blocos de influência, que a Lei Fundamental de 1946 se expôs à sua própria vulnerabilidade.

​Isto se vê claro no governo Dutra, quando o Partido Comunista foi posto na ilegalidade, os sindicatos operários sofreram intervenção do Ministério do Trabalho, os movimentos estudantis foram reprimidos e nenhum aumento salarial foi concedido aos trabalhadores; prenúncio de um regime cujo desfecho atingiria o paroxismo dezoito anos depois.
​No quadro convulso da década de 40 e 50, alianças e composições políticas as mais espúrias se apresentavam. De um lado, o populismo, que congregava em seu seio os sindicatos controlados pelo Estado, aliado ao bloco oligárquico rural – a célebre aliança PTB-PSD. De outro, os liberais, representados pela antiga UDN, no início um partido de centro com tendência para esquerda, que forjava aliança com os militares de direita e preconizava soluções extra constitucionais para impor a sua hegemonia. Contava com a simpatia e o apoio dos grupos econômicos internacionais que enxergavam no surto crescente do movimento nacionalista civil-militar, uma ameaça que poderia deslocar o Brasil da política de alinhamento automático.

​O segundo governo Vargas – 1950 a 1954 – legítimo e de caráter nacional-reformista, não dissipou as prevenções e idiossincrasias oriundas do Estado Novo. Não obstante, tentou uma mudança de rumos com a adoção de uma política econômica protecionista, instrumentalizada pelo chamado “confisco cambial”, que proporcionou superavitsna balança comercial e de pagamentos. O processo de desenvolvimento foi retomado pela captação dos recursos oriundos da licitação de ágios de exportação, cuja aplicação visava à criação de uma indústria de bens de capital.

​Sob aquela presidência foram criados o BNDE, o Banco do Nordeste, a Petrobrás – empresa estatal que detinha o monopólio da pesquisa e exploração do petróleo no território nacional-, a Eletrobrás, a Fábrica Nacional de Motores, a Indústria Química de Base e a Indústria Nacional de Álcalis. Além disso, Getúlio Vargas não dispensou o concurso do capital estrangeiro, como no caso da Manessman. O modelo de desenvolvimento getulianovisava, sobretudo, à formação de um amplo mercado interno destinado a dar suporte ao desenvolvimento autossustentável, de forma a libertar o país da dependência externa. Mas, a política de Vargas, carecia de uma clara base social de cobertura, uma vez que, o populismo, amorfo e desorganizado, tinha como atuação principal o clientelismo que dispensava a existência de uma ideologia. Estas contradições latentes entre os grupos de pressão da sociedade projetaram o seu colapso, iniciado com o suicídio do Presidente.

O governo Kubitschek e seu plano de metas – 50 anos em 5 – configuraram uma administração hibridista em que se equilibravam e se apaziguavam os avanços dos movimentos populares e os privilégios das classes dominantes. Invertendo o processo de desenvolvimento getuliano, foram lançadas as bases de um welfare statebrasileiro voltado para a produção de bens de consumo durável. Juscelino Kubitschek manteve o confisco cambial, mas redirecionou o processo de desenvolvimento nacional, transformando-o de produtor de bens de capital, em produtor de bens de consumo durável. Foi sob sua presidência que o capital financeiro multinacional e associado ganhou preeminência, passando a exercer grande influência no processo de tomada de decisão nos negócios do Estado.

​Apesar da aliança circunstancial desse grupo emergente com os representantes do latifúndio exportador que ainda detinham o controle político, seus interesses divergiam, substantivamente, dos da velha oligarquia, que vinha se mantendo ao longo da história republicana pela força da inércia e do paternalismo. As propostas populares em favor das reformas de base levadas às ruas pelo governo Goulart, conduziram à ruptura da consagrada aliança do bloco populista-oligárquico e industrial, tornando intransitável, em um Parlamento dominado por conservadores, qualquer projeto de transformação pela via constitucional. Findou-se, pois o equilíbrio de forças fazendo emergir uma nova estrutura de poder de viés modernizante-conservador.
A derrocada do governo de João Goulart e o golpe de 1964 assinalaram, precisamente, a articulação dos setores organizados do capital multinacional e associado – surgidos no bojo do processo desenvolvimentista de Kubitschek – com a tecnoburocracia civil e militar, marcando o progressivo alijamento da oligarquia rural do processo decisório estatal. Contou, ainda, esta coligação, com o apoio da classe média e o silêncio das camadas populares.

Sob este panorama, chegava ao fim a terceira República cuja ordem jurídica, profundamente descaracterizada por quatro Atos Institucionais, seria sucedida pela Constituição autoritária de 1967, posteriormente emendada em 1969, principiando-se uma ditadura militar fadada a durar duas décadas.

Nesta altura, cumpre avaliar as razões conjunturais da crise brasileira que resultou na inconciliável contradição entre o artificialismo político e a realidade nacional.

A ausência de tradição constitucionalista – marca definidora da formação jurídica brasileira – oficializou na lei a exclusão popular na formação da vontade do Estado, constante que se verifica, inclusive, em momentos de normalidade, como testemunham a fraude eleitoral e o “reconhecimento de poderes” nos estertores da República Velha, e a negação do direito voto aos analfabetos e aos militares sem patente de oficial – os chamados praças de pré – nas Cartas de 1934 e 1946.

Ao contrário da América Inglesa, não se formou no Brasil um common sense, nem se praticou o self government. O liberalismo revelar-se-ia inadequado para estabelecer um pacto que resultasse num consenso justaposto dos atores sociais, esterilizado por um processo histórico autoritarista que contrapunha o “país real” ao “país legal”. Oposição pública atuante e partidos políticos ideologicamente consistentes, nunca representaram os fatores reais do poder. Os direitos sociais, convertidos em preceitos programáticos na Lei Fundamental de 1934, soçobraram diante de um Estado elitista e desinteressado em conciliar os interesses desiguais das forças antagônicas que emergiram no cenário nacional. A democracia tutelada, com ou sem a Coroa, e os golpes usurpatórios, seriam as soluções possíveis para efetivar uma governabilidade oblíqua.

Neste contexto, a tarefa de garante da normalidade constitucional cabe à Lei Fundamental da quarta República, promulgada em 1988. A ela se lhe impõe o desafio de proclamar a força cogente de sua normatividade e de fazer valer os princípios do igualitarismo. Mais, a ela se lhe impõe a mantença da estabilidade democrática, tão acutilada por vicissitudes políticas e rupturas institucionais ao longo da História.

Efetivamente, a vigente Constituição brasileira, a chamada Carta Cidadã, restaurou o Estado Democrático de Direito. Notável valor foi dado aos direitos e garantias individuais, principal bandeira da AssembleiaConstituinte. Além de terem sido transpostos do final da Carta de 1967 (artigos 153 e 154) para o início da Lei Magna de 1988 (artigo 5º), eles deixaram o universo das limitações implícitas para repousar entres as expressas, restando intocáveis pelo poder de reforma.

Participaram da construção deste novo regime as forças sociais emergentes das lutas contra o regime autoritário, uma confluência de tendências ideológicas que reuniu sindicatos, partidos políticos, minorias étnicas, de gênero, intelectualidade e povo.

O processo de redemocratização no Brasil inseriu-se em um movimento que avançou pela Ibero-América e alcançou a Argentina, Bolívia, Peru, Uruguai, Chile, Paraguai, dentre outros países, rompendo o mito de que a América Latina estaria condenada ao autocratismo.

Certo é que o país de hoje é conjunturalmente diverso dopais do passado. Conforme já salientado, a Lei Maior, para além de assegurar amplas garantias aos direitos fundamentais, ampliou a participação do Poder Judiciário e do Ministério Público na sua função de custus legis, aprofundou o federalismo e salvaguardou os direitos difusos, patrimônio de toda a humanidade.

Para demarcar a mudança ocorrida no sistema de governo, a Carta Magna qualificou como crimes inafiançáveis a tortura e as ações armadas contra o Estado Democrático e a ordem constitucional, criando dispositivos para bloquear golpes de qualquer natureza. Sob a sua égide, o cidadão conquistou o direito ao sufrágio em eleições diretas para os cargos de Presidente da República, Governador de Estado, Prefeito, Deputado (Federal, Estadual e Distrital), Senador e Vereador, para além da estatuição dos significativos mecanismos da democracia direta: o plebiscito, o referendum e a iniciativa popular. Estendeu-se, ademais, o direito de voto ao analfabeto.

A novel Carta ampliou, ainda, os poderes do Congresso e instituiu importantes writs para a defesa dos direitos individuais e coletivos, a saber: o mandado de segurança coletivo ao lado do individual já previsto pelas Constituições anteriores, o habeas data, o mandado de injunção, preservando, outrossim, o tradicionalíssimo habeas corpus.

No tocante às limitações materiais explícitas, as chamadas cláusulas pétreas, a inovação trazida pela Constituição de 1988 consistiu na ampliação do núcleo reservado às vedações absolutas, presentes no artigo 60 § 4º. A Constituição de 1967, emendada em 1969, previa, apenas, duas limitações formais; vg: a abolição da Federação e da República (art. 47, § 1º) . A vigente Lei Maior vedou, além da forma federativa de Estado, emendas tendentes a abolir o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.

Cumpre destacar que a redemocratização do Estado Brasileiro não ocorreu com rupturas ou quebra de autoridade, mas, sim, dentro do contexto do ordenamento jurídico precedente. A Emenda Constitucional nº. 26 de 1985, que alterou o texto da Lex Magna de 1967, acabou com a fidelidade partidária, facilitou a criação de partidos políticos, retirou a vigência das cláusulas pétreas, convocou uma Assembleia Constituinte e estabeleceu as normas que a regulariam. Destarte, não houve uma ruptura com o regime precedente e uma sucessão de constituições, a Carta Magna de 1988 surgiu por intermédio de uma reforma, promulgada por uma Assembleia Constituinte Derivada, como se Originária fosse.

Decorridas duas décadas de sua promulgação e tendo sido modificada por 6 Emendas Revisionais, 116 Emendas Constitucionais e acrescida de dois tratados internacionais de direitos humanos aprovados de forma equivalente à segunda, o desafio que persiste é dar efetividade aos direitos sociais.

Em conclusão, dúvidas não restam ser a atual Lei Fundamental brasileira um repositório de valores éticos, fecundadora de uma autêntica e legítima ordem normativa. Fruto da realização de um constitucionalismo moderno, ela representa um instrumento de transformação da realidade nacional. Documento jurídico altamente meritório e sobremodo sensível às desigualdades econômicas, se traduz num importante pacto que, a despeito de haver completado 32 anos de existência, ainda conserva o que dissera o deputado Ulysses Guimarães, então Presidente da Assembleia Constituinte de 1986: “um cheiro de amanhã”.