Do ex-presidente da Ajufe, juiz federal Walter Nunes da Silva Júnior, titular da 2ª Vara Federal do Rio Grande do Norte, membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP e Corregedor do Presídio Federal de Mossoró sobre os 32 anos da promulgação da Constituição ocorrida em 5 de outubro de 1988:
“A ditadura militar, no final dos anos 1970, começou a perder força, ganhando espaço cada vez mais acentuado o processo de democratização do país. O insucesso da emenda constitucional que restabelecia as eleições diretas para a presidência da república, ao invés de arrefecer os ânimos, serviu de combustível para que, eleito um governo civil, fosse convocada uma assembleia constituinte, a fim de que, normativamente, fosse rompido o regime anterior e, em seu lugar, arquitetada uma nova ordem jurídica. A Constituição de 1967, outorgada pelo Governo militar, não expressava os nossos valores. Não tínhamos empatia por ela.
O descompromisso com esses valores foi tão exagerado, que MIGUEL REALE, em depoimento prestado na televisão, sobre a sua vida ativa na política brasileira a partir da década de trinta, revelou que, concluído o projeto da Constituição de 1967, quando submetido o texto à sua apreciação, ele apontou que faltava o rol dos direitos fundamentais. Parece até inacreditável que, nos anos 1960, em um país das dimensões do Brasil e com um histórico de respeito, pelo menos normativo, aos direitos fundamentais desde a Constituição Imperial de 1824, tivesse espaço para que um grupo de militares, dizendo-se revolucionários e representantes maiores dos interesses do povo, fizesse uma proposta de Constituição sem que nela houvesse a declaração de direitos fundamentais. A revelação de um dos maiores jusfilósofos brasileiros é um espanto e mostra não apenas a falta de sensibilidade em relação ao assunto como o completo descompromisso com o movimento histórico e mundial que tornou obrigatória a menção aos direitos fundamentais nos textos constitucionais, premissa lógica que nem a ditadura VARGAS, estabelecida no instável e beligerante período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial, ousou contrariar.
Verificado o equívoco, eis que a declaração dos direitos fundamentais veio sob a rubrica Dos direitos e garantias individuais. Em termos declaratórios, ainda que se apontem, aqui e ali, alguns senões, até que a Constituição de 1967 manteve a tradição de homenagem aos direitos fundamentais, ainda que isso fosse apenas uma retórica, pois, na prática, o governo militar, cada vez mais, acentuava a sua cara repressiva e combatia quem se atrevia a pensar de forma diferente com instrumentos aviltantes, banalizando o sofrimento humano e a própria vida das pessoas. O que já era ruim ficou pior, pois a Constituição de 1967 foi reescrita pela Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969. Na realidade, essa emenda estabeleceu uma nova Constituição, pois modificou a estrutura fundamental da Carta então em vigor. Na redação da Constituição de 1967, conforme a Emenda Constitucional nº 1/69, a declaração dos direitos fundamentais foi contemplada nos trinta e seis parágrafos do seu art. 153.
Diante dessa rejeição ao texto constitucional então vigente, sem embargo das críticas assacadas pela circunstância de não ter sido providenciada a eleição de constituintes com mandato específico para a elaboração de nova Constituição, o Congresso Nacional produziu um texto que foi exaustivamente debatido nos mais diversos fóruns representativos da academia e dos juristas, assim como das entidades de classe dos mais diversos setores da sociedade.
Quando da promulgação da Constituição, no dia 5 de outubro de 1988, eu era Juiz de Direito na Comarca de Touros/RN, e estava trabalhando. Lembro-me que, ao final do expediente, em companhia do escrivão e do Promotor de Justiça, fizemos uma grande comemoração pelo acontecimento. Nunca me esqueço desse dia. É especialmente marcante para mim. Sempre conto esse episódio para os meus alunos, acrescentando que foi o dia em que tomei um dos maiores porres da minha vida. A promulgação da nova Carta era o grito preso na garganta fazia quatro anos, com a derrota da Emenda das Diretas Já, em 1984.
A despeito de não se acreditar que fosse possível a produção de uma Carta Política ideal, se o resultado final não foi o que se almejava, pelo menos quanto aos direitos fundamentais não há muito do que se reclamar. Houve acentuada preocupação em declarar na Constituição os direitos fundamentais catalogados nas Constituições da Alemanha, França, Itália, Espanha e Portugal, ademais daqueles que estavam expressos em diplomas internacionais e regionais.
Os direitos fundamentais, até então tratados como princípios desprovidos de força normativa, mencionados na rabeira da Carta de 1967, passaram à categoria de espinha dorsal do sistema jurídico, a partir do reconhecimento de que possuem não apenas força normativa como hierarquia superior às demais normas jurídicas. Deixaram a função subalterna de colmatação das lacunas das regras jurídicas para desempenhar função hegemônica, estruturante e interpretativa de todo o sistema normativo.
Não apenas foram mantidas as garantias que já constavam das Constituições anteriores como restaram acrescentados outros que nunca tinham sido proclamados com status constitucional como a inviolabilidade da intimidade em geral, a presunção de não culpabilidade, a publicidade dos atos processuais, o direito ao silêncio, e, como sanção à violação das garantias estampadas no texto, a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos.
A fim de ressaltar a mudança de paradigma, o constituinte teve o cuidado de catalogar os direitos fundamentais logo no início do texto constitucional, mais precisamente nos incisos do art. 5º. Ainda assim, do art. 1º ao 4º foram preceituados os valores que devem nortear a sua compreensão. Nesses dispositivos – art. 1º a 4º – estão plasmados os princípios fundamentais e os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, valores que formatam o arcabouço jurídico dentro do qual devem ser concebidos os direitos fundamentais.
O valor-mor é de que o novo sistema jurídico arquitetado pela Constituição de 1988 é o democrático-constitucional, pois, tal como asseverado no art. 1º, o Brasil é um Estado Democrático de Direito. Assim, o sistema jurídico em si deve ser democrático-constitucional, orientado e compreendido em compasso com a função hegemônica, estruturante e interpretativa dos direitos fundamentais.
Portanto, temos muito a comemorar no dia de hoje, em que a Constituição completa 32 anos de vigência. É o momento ideal para reafirmarmos o nosso compromisso quanto ao cumprimento dos ditames da Constituição e de defender a democracia, ainda que isso importe em sacrifícios, pois os direitos fundamentais, que só se materializam em ambientes democráticos, pertencem a todos os homens – de ontem, de hoje e de amanhã –, especialmente aqueles que tombaram no caminho em busca da concretização desse ideário”.