Uma ação contra recente biografia de Roberto Marinho pode desobrigar editoras a cumprir prazo de publicação de livros. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) analisa, em segunda instância, processo movido pela Companhia das Letras para cobrar autor que, após vencimento do tempo estabelecido em contrato, procurou outra editora para publicar sua obra.
O caso foi judicializado em maio do ano passado, quando a Companhia das Letras entrou com processo para impedir o jornalista Leonencio Nossa, com quem tinha firmado o primeiro contrato, a publicar, comercializar e vender exemplares da biografia Roberto Marinho, o poder está no ar, que estava sendo lançada pela Nova Fronteira. O advogado Alexandre Fidalgo, especialista em direitos autorais, observou na defesa do autor que a Companhia descumpriu acordo de publicar o livro no prazo máximo de um ano após a entrega dos originais.
Vencido esse prazo, em março de 2018, o jornalista combinou com a direção da Companhia das Letras em retirar o trabalho da casa e procurar outra editora. Um ano depois desse acordo amigável e dois anos após receber os originais, a editora paulista, no entanto, entrou na Justiça para barrar a publicação da obra pela concorrente do Rio de Janeiro. A decisão foi tomada, em maio de 2019, pela Companhia assim que soube que a obra seria lançada pela Nova Fronteira.
O juiz Claudio Marquesi, da 24ª Vara Cível de São Paulo, analisou o processo num tempo recorde de três meses. Sem recorrer a peritos e ouvir presencialmente as partes, ele decidiu a favor da editora. Na sentença, o magistrado ressaltou que só poderia ser reconhecido que o autor entregou os originais se não houvesse necessidade de alteração do texto.
A sentença a favor da Companhia das Letras vai na contramão de obras de referência sobre o processo editorial. Antonio Houaiss, em Elementos da Bibliologia, clássico do setor, afirma que a “entrega dos originais” é uma etapa prévia à edição do texto de um livro. A defesa da editora paulista, porém, sustenta que o texto sobre Roberto Marinho ainda precisava ser alterado. Na avaliação de Alexandre Fidalgo, esse argumento ignora o significado de original definido pelos dicionários, como a primeira redação de uma obra.
O juiz da 1ª instância não retirou o livro de circulação, como desejava a Companhia das Letras, mas bloqueou o dinheiro das vendas para o pagamento de adiantamentos. A editora argumentou que o processo para suspender a publicação, o lançamento e a comercialização da obra tinha por intuito reaver adiantamentos que, nos seus cálculos, chegariam a um valor corrigido de R$ 210 mil, incluindo despesas de edição. É quase o dobro do valor de R$ 117 mil que caiu na conta do jornalista.
Jurisprudência. A Lei dos Direitos Autorais, número 9.610, de 1998, estabelece prazos legal e contratual para publicação de uma obra. Uma vitória da Companhia as Letras na Justiça, no entanto, pode dar margem a uma jurisprudência que mudaria radicalmente o dia a dia de editores e autores no País. Se essa decisão prevalecer nos tribunais, os escritores perdem, na prática, o direito sobre sua obra por tempo indeterminado.
Fidalgo recorreu da decisão ainda em 2019. No último dia 9 de outubro, o desembargador Mauro Conti Machado, do TJSP, que analisava o caso na segunda instância, decidiu transferir o processo para uma das Câmaras da 1ª Subseção de Direito Privado, do tribunal. Ele argumentou que as câmaras tinham competência para julgar questões relativas a direito de autor. Machado, entretanto, citou trecho do artigo 62, parágrafo único, da Lei 9.610 que prevê rescisão de contrato em casos de descumprimento de prazos legal ou contratual de publicação.
É o primeiro caso judicial no setor de biografias envolvendo uma grande editora após a derrubada, há cinco anos, da censura prévia de obras pela ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal. Desta vez, porém, quem tenta tirar uma obra de circulação é uma editora.
Coautor. Antes da judicialização, a disputa entre autor e editora foi marcada por divergências. A Companhia das Letras escalou o biógrafo Lira Neto para, segundo ela, revisar o trabalho. Em e-mails anexados ao processo pela própria editora, o autor não aceitou mudanças feitas por Lira Neto no texto. Também registrou desconforto em saber por terceiros da decisão do dono da editora, Luiz Schwarcz de anunciar em círculos reservados que contratou Lira Neto como coautor do trabalho. Ainda na época, a editora pediu desculpas a Leonencio, mas não aceitou tirar o biógrafo do projeto.
Nos autos, a defesa do jornalista ressalta que por trás da presença de Lira Neto na edição do livro estava a contrariedade de Schwarcz com um capítulo que relata tentativa do banqueiro Walther Moreira Salles de tomar a TV Globo de Marinho. Walther era pai de Fernando, um dos sócios da Companhia das Letras durante o período da edição da biografia. O advogado Alexandre Fidalgo pede que as partes sejam chamadas para depor.