O artigo “Os 80 anos da CLT” é de autoria do ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), ministro aposentado Carlos Alberto Reis de Paula
“Fazendo um recorte na história, vamos a um período em que o trabalho não era considerado como um valor que dignificava quem trabalhava.No passado colonial e sustentado pela escravidão, o trabalho servia de obrigação para a sobrevivência para a maior parte da população. Falamos do período da escravidão, formalmente até antes de 1888. O trabalho se desenvolvia sobretudo no campo. As elites brasileiras explicavam o trabalho de dois modos, ambos negativos. O escravo trabalhava porque era negro, de raça inferior. O branco trabalhava porque era pobre, miserável.
Os homens que fossem brancos, e brancos de qualidade, não trabalhavam, porque não precisavam. Assim o trabalho não era dever nem direito, e não tinha nada a ver com dignidade nem com cidadania.
Com a Lei Áurea, em 1888, a liberdade dada aos negros mudou pouco a sua realidade, pois não lhes garantia a vida, a sobrevivência, a alimentação. A lei não lhes dava proteção, e não lhes era ofertado emprego decente. Daí por que muitos continuaram nas fazendas, como se nada tivesse ocorrido. Outros andavam sem rumo, mendigando, vagando à toa pelos campos, vilas e cidades.
O Brasil vivia o período dos ofícios, em que se trabalhava com os artesãos, nas comunidades de então.
A institucionalização do direito do trabalho no Brasil iniciou-se em 1930 e se desenvolveu até 1945, em um cenário histórico prevalente de regime de exceção. Tivemos a Constituição de 1934 e a partir de 1935 e até 1945 vivemos um regime de ditadura.
Em 1930, o governo Vargas criou o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, cujas principais funções eram as de regulamentar algumas profissões específicas e, principalmente, administrar a organização do proletariado em cooperação com o Estado.
Em 1935 Vargas decretou o estado de sítio e em 1937 instituiu um regime autoritário, respaldado por uma Constituição outorgada, mediante o fechamento do Congresso Nacional. Proliferaram os Decretos-Leis que reformaram a normativa trabalhista e o sistema sindical brasileiro.
A Justiça do Trabalho, à época vinculada ao Poder Executivo, foi criada em 1939 e passou a funcionar a partir de 01 de maio de 1941.
O processo de elaboração da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), na condição de “principal fonte de direito positivo do trabalho no Brasil”, foi gestado a partir de 1942 com a designação de uma comissão de dez membros para a elaboração de um anteprojeto e teve sua culminância em 01 de maio de 1943, quando foi aprovada pelo Decreto-Lei 5.452. No dia do trabalho, Vargas assinou a CLT no Estádio de São Januário, robustecendo o mito de Vargas como o “pai dos pobres”.
Releva destacar que a CLT, apesar do nome de Consolidação, não se limitou a reunir a legislação que até então estava em vigência. A comissão constituída para sua elaboração não só ordenou os textos, sistematizando títulos e capítulos, mas acresceu dispositivos e fez alterações nos textos então vigentes. Na verdade, o trabalho tinha mais características de um Código, sobretudo se considerarmos a precariedade da legislação então vigente até a década de 1930.
O fato é que a CLT assumiu papel decisivo para a construção e progresso do trabalho regulado no país.
A historiadora Ângela de Castro Gomes ressalta que em relação aos benefícios da legislação social se estabelecia uma lógica que representava esses benefícios como doações, o que fazia surgir o sentimento de gratidão e retribuição nos trabalhadores.
Em 1940, 20% da população era urbana, estando o restante no campo. Mais precisamente, em 1920, o quadro estatístico revelava que o Brasil tinha 30 milhões de habitantes, com 76% de analfabetos, residindo e trabalhando no campo, em sua esmagadora maioria. Residir no campo nas décadas de 30 e 40 do século passado era estar rigorosamente isolado, com remotas notícias do que acontecia no mundo.
Apesar do Brasil ser um país rurícola, a CLT era voltada exclusivamente para os trabalhadores urbanos. Voltava-se para os trabalhadores do comércio e da indústria, então incipiente.
No âmbito individual a CLT recebeu influências de várias correntes do pensamento na cultura ocidental, dentre as quais da doutrina social da Igreja, traduzida na Encíclica Rerum Novarum, de 1891, do Papa Leão XIII. Sofreu influência também da OIT e de suas Convenções internacionais.
A CLT instituiu um modelo de contratação trabalhista próprio, em que se afastava do individualismo consagrado no Direito Civil, à medida que estabeleceu limites à contratação, preservando e garantindo direitos e obrigações, tanto para empregado quanto para empregadores.
De outra sorte, abandonou o formalismo que prevalecia no âmbito do direito civil, consagrando como um dos seus princípios o de prevalência da realidade sobre a forma. Ainda que não houvesse a assinatura da CTPS, poderia estar naquela vinculação uma relação de emprego pela presença de seus elementos fundamentais (pessoalidade, subordinação, não eventualidade, não gratuita).
No âmbito coletivo-trabalhista, a CLT foi fortemente influenciada pela Carta Del Lavoro, do governo italiano de Benito Mussolini, de franca inspiração fascista.
Ao longo do tempo a CLT foi sendo alterada, como na regulação do descanso semanal remunerado (em 1949), sua extensão com ressalvas aos trabalhadores do campo (já em 1963 e depois 1973) e o FGTS (em 1966).
Para a melhor compreensão da CLT hoje há de se considerar a Constituição da República de 1988, por assentar como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
Entre os direitos e garantias fundamentais, a título dos direitos sociais o art. 7º da Constituição alinhou direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, para logo após, nos artigos 7º e 8º, proclamar a liberdade de associação profissional ou sindical e o direito de greve. Com a lente desses paradigmas é que se deve proceder à leitura, compreensão e observâncias dos normas da CLT.
As normas gerais de tutela do trabalho, como as relacionadas à duração do trabalho, à segurança e medicina do trabalho, à proteção do trabalho da mulher e do menor, acresçam-se as relativas às normas especiais de tutela do trabalho, sempre na linha de ter a pessoa humana como centro referencial pelo que a vedação de condutas discriminatórias.
As alterações na CLT, um contínuo desafio ao legislador, devem sempre respeitar os princípios consagrados na Constituição. Na interpretação a se fazer do texto consolidado, inclusive trazendo-o para os desafios de novas situações existentesno universo laboral, o pilar há de estar sempre assentado no respeito aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, sempre na preservação da dignidade da pessoa humana.
Saudemos a CLT pela sua importância no nosso universo socioeconômico, principalmente”.