O artigo é de autoria do ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro César Asfor Rocha. Atualmente, César Rocha é advogado em São Paulo:
Convido o leitor para um rápido exercício de memória: voltar ao ano de 2009 e lembrar da longa viagem que um processo fazia até chegar às instâncias superiores. Você se lembra dessa saga, não? Há 10 anos, depois de encerrarem o trâmite nos tribunais estaduais e regionais federais, os processos levavam cerca de um ano até chegarem ao gabinete de um ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Os recursos eram enviados pelos Correios ao custo anual de R$ 20 milhões. Ao chegarem, eram separados de acordo com a categoria a que pertenciam e acostados a outros 300 mil processos que já estavam por lá. Se fossem colocados em uma única pilha, os documentos alcançariam 13 mil metros de altura, o equivalente a 342 vezes o Cristo Redentor.
César Asfor Rocha sobre o STJ
Há 10 anos, o STJ mantinha um departamento de marcenaria para fabricar prateleiras e consertar as cerca de 50 portas danificadas mensalmente pelos carrinhos usados no transporte dos processos pelos corredores; dezenas de salas eram usadas exclusivamente para armazenar arquivos e processos julgados ocupavam um depósito gigantesco fora do prédio do tribunal; parte da garagem se transformou em depósito e os funcionários trabalhavam entrincheirados entre as milhares de pastas. Frequentemente, sofriam com alergias, crises respiratórias e de pele, afastando-se do trabalho pelos problemas de saúde e a produtividade da corte era afetada.
Há 10 anos, tomamos a decisão de sair da era analógica e entrar de cabeça no mundo digital. E os resultados daquela decisão não poderiam ser melhores. O tribunal foi pioneiro ao iniciar um processo de digitalização que revolucionou o Judiciário, reinventou a relação dos tribunais com a tecnologia, realizou o maior processo de inclusão da Justiça e virou referência mundial. O STJ recebeu o Prêmio Innovare de 2009 pela iniciativa e o Banco Mundial passou a usar o projeto como referência para outros países. O Brasil se tornou o primeiro país do mundo com um tribunal de atuação nacional totalmente digitalizado. O resultado deve ser motivo de orgulho para os brasileiros, principalmente para juízes, advogados e membros do Ministério Público.
A era da digitalização
Hoje, falar em digitalização soa óbvio. Naquela época, contudo, não era assim. Quando assumi a presidência do STJ, em setembro de 2008, e anunciei que o papel seria extinto, resistências vieram de todos os lados. Ministros diziam que o sistema ficaria vulnerável, advogados temiam perder acesso aos gabinetes e os servidores, por sua vez, os empregos. Mas era um caminho sem volta.
Em janeiro de 2009, o mutirão da digitalização teve início. O projeto, chamado “STJ na Era Virtual”, empregou uma equipe de 429 pessoas. 242 delas eram surdos-mudos contratados em uma parceria inédita com a Associação de Centro de Treinamento de Educação Física Especial (Cetefe). Eles foram os responsáveis por conduzir a parte mais importante desse trabalho e, para a quase totalidade, tratou-se da primeira oportunidade de emprego na vida. Outros 121 contratados e 66 servidores conferiam os processos digitalizados e os originais e faziam a indexação dos arquivos. Espalhados em uma área de 600 metros quadrados, eles passaram meses debruçados sobre dezenas de computadores e scanners para transformar o papel em digital.
Um sistema virtual para tramitação eletrônica dos processos foi criado pelos próprios técnicos do STJ e o tribunal passou a ter a propriedade de sua criação. Os cinco tribunais regionais federais e os 27 tribunais de justiça estaduais, aos poucos, foram sendo integrados. Por força do STJ, eles também tiveram que digitalizar seus acervos e ingressar novas ações pelo meio virtual. Ao final de 2009, o que era um objetivo muito difícil de ser atingido, já havia sido ultrapassado. Já havia 29 cortes completamente conectadas e enviando processos apenas por meio eletrônico – o plano original, bastante audacioso, previa 26. Tudo feito com sistemas elaborados dentro do próprio tribunal, com mais segurança do que se fazia antes.
A morosidade, um dos maiores problemas do Judiciário
O esforço ajudou a diminuir um dos maiores problemas do Judiciário: a morosidade. Aquele “um ano” que um processo levava entre a segunda instância e a mesa dos ministros, passou para seis dias. A distribuição dos processos para os relatores, que levava um mês, passou a ser feita em frações de segundo. Os servidores deixaram de emitir atestados médicos por conta dos problemas de saúde trazidos com o acúmulo de papel.
A distância física entre os advogados e o STJ diminuiu. Com a criação do e-STJ, uma cesta de serviços foi disponibilizada na internet, as partes passaram a acessar integralmente a todos os processos, a fazerem consultas em qualquer horário, protocolizarem petições, interposição de recursos e realização de outros atos processuais sem a necessidade de estarem presencialmente na sede da corte, no Distrito Federal.
Os gastos com os correios foram drasticamente reduzidos. Só no STJ, sem incluir os outros tribunais na conta, a economia com impressoras e papel foi de R$ 2,5 milhões anuais. O processo digital também é menos oneroso para a natureza pois além de poupar energia, os 300 mil processos em papel que chegavam anualmente à corte equivaliam ao desmate de 32 mil árvores e ao consumo de 2,7 milhões de quilowatts por hora para produzir matéria-prima. Isso acabou.
Há 10 anos, quando anunciei o projeto que a Justiça brasileira estaria encampando, havia mais dúvidas do que certezas. Mas o “STJ na Era Virtual” mostrou que, com planejamento, determinação e ousadia, o Brasil poderia ter o primeiro tribunal nacional do mundo inteiramente digitalizado. Para se ter melhor ideia da dimensão de tudo isso, basta se indagar se seria possível pensar e atuar no STJ nos dias de hoje pelos meios tradicionais do processo de papel.