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Terras indígenas: pelo direito de existir

O artigo “Terras indígenas: pelo direito de existir” é de autoria do advogado e ex-presidente da OAB de Sergipe por três vezes (sempre escolhido pelo voto direto dos advogados), Henri Clay Andrade:

Quando os portugueses chegaram ao Brasil em 1.500, vários povos indígenas habitavam há muitos tempo o território nacional, distribuídos nas cinco regiões geográficas.

Os povos nativos foram escravizados, colonizados, espoliados e catequizados pelos brancos europeus. Aldeias foram exterminadas, as terras foram violentamente esbulhadas e sua cultura paulatinamente massacrada.

Uma história do Brasil muito violenta, marcada pela crueldade, pela covardia, pela grilagem de terras e pelo extermínio dos povos que ousaram lutar e resistir. Tomaram as terras brasileiras dos povos indígenas na mão grande, na base do roubo e da força.

Ao longo dos séculos, milhões de indígenas foram assassinados ou morreram de doenças epidêmicas, desprovidos de amparo estatal. Segundo dados oficiais da Funai, em 1.500 a população indígena era de três milhões de habitantes, divididos entre mil povos diferentes.

Pelo censo demográfico de 2010 realizado pelo IBGE, subsistem no Brasil pouco mais de 800 mil indígenas, sendo que a maioria se localiza na zona rural. Essa população habita em 505 terras indígenas, sendo 462 regularizadas, o que representa 12,2% do território brasileiro. A maior concentração indígena está na região norte do país, principalmente no Estado do Amazonas.

No Brasil existem 305 etnias diferentes e 274 línguas indígenas. É gente brasileira desamparada, massacrada e violentada todos os dias, sem a devida proteção do Estado brasileiro. Pessoas que vivem em situação de pobreza, desnutrição, desrespeito e que sofrem alto índice de mortalidade. A crueldade e o extermínio continuam, e com a espantosa indiferença social.

Ainda hoje as terras indígenas têm sido violentamente invadidas, e os povos indígenas têm sofrido com a exploração no trabalho e até a exploração sexual, inclusive infantil. Um horror!

Em 1967 foi criada a Fundação Nacional do Índio – Funai -, com a finalidade de organizar e promover a delimitação, a demarcação e a regularização das terras dos povos indígenas no Brasil. Cabe também a esse órgão coordenar e implementar as políticas de proteção. E em 1973 foi criado o Estatuto do Índio, cujo objetivo foi regular a situação jurídica dos povos indígenas.

No entanto, o conflito por terras permanece latente. A demarcação das terras indígenas é o meio de garantir a posse e de proteger juridicamente esses povos contra invasões. Esse território delimitado, demarcado e regularizado facilita o controle estatal e o implemento de políticas públicas nas áreas vulneráveis e de difícil acesso.

A demarcação das terras indígenas também é muito importante para a preservação do meio ambiente, porque contribui para a diminuição do efeito estufa, face à impossibilidade de desmatamento.

A constituição federal vigente estabeleceu grande avanço sistemático ao determinar ao Estado brasileiro o dever de respeitar e garantir a pluralidade étnica e a autonomia dos povos indígenas. Portanto, a demarcação e o uso exclusivo das terras pelos povos indígenas são direitos subjetivos públicos originários, previstos no artigo 231, da constituição federal.

No entanto, mesmo com esse sistema de normas protetivas, ainda assim cerca de 85% das terras indígenas são impunemente invadidas e seus recursos naturais são ilegalmente explorados pelos grileiros, com a absoluta conivência dos governos estaduais e federal.

A ambição de gente poderosa pelas terras dos povos indígenas é constante. Nesse momento os indígenas protestam contra o Projeto de Lei 490 em tramitação na Câmara dos Deputados, que estabelece mudança nas regras para a demarcação de terras indígenas. O PL 490 prevê exigência da comprovação de ocupação do território na data da promulgação da constituição federal. Isto é, em 5 de outubro de 1988.

Pela legislação atual, a demarcação de terras indígenas segue o rito de um processo administrativo da Funai, não havendo necessidade de comprovação de posse em data específica.

O PL 490 também proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas, mesmo que em regular processo administrativo estejam evidenciados os critérios objetivos para a reivindicação demarcatória legítima dos povos indígenas interessados.

O que se pretende com esse famigerado projeto de lei é impedir que novas terras indígenas sejam delimitadas, demarcadas e regularizadas e que diversas outras que já estão em curso sejam inviabilizadas.

O PL 490 tem o patrocínio e o apoio da bancada ruralista. O relator do projeto é o deputado federal Arthur Maia, do DEM da Bahia. Esse projeto representa um grande retrocesso, além de ser inconstitucional.

Inclusive, o Supremo Tribunal Federal, quando se pronunciou a respeito da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, cujo relator foi o então ministro Carlos Ayres Britto, decidiu que a constituição federal, no artigo 231, assegura direitos aos povos indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam, independentemente da comprovação de marco temporal.

Está previsto para o próximo mês de agosto o julgamento no STF do processo relacionado à demarcação de terra do povo Xokleng, localizado no Estado de Santa Catarina, cuja decisão terá repercussão jurídica geral. Ou seja, o julgamento do processo vai definir a jurisprudência da Suprema Corte a respeito do tema e deve sepultar a tentativa de retrocesso social articulado na Câmara dos Deputados em Brasília.

Hoje não é o dia 19 de abril, mas todos os dias devem ser de luta e de resistência em defesa dos direitos dos povos indígenas de existirem e viverem em suas terras com dignidade e desenvolvimento sustentável, para garantir a pluralidade étnica e preservar a diversidade cultural da nação brasileira.