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Artigo: O passado já chegou

O artigo “O passado já chegou” é de autoria de Antonio Carlos Bigonha compositor, pianista e Subprocurador-Geral da República:

Aníbal Quijano, o célebre sociólogo peruano, afirma que o colonialismo consiste na instauração de uma estrutura de dominação e exploração na qual o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de um povo estão submetidos a outra população de diferente identidade e cujas respectivas sedes centrais estão, além disso, localizadas em jurisdições territoriais distintas. Neste sentido, quando falamos do colonialismo ao longo da história, nos referimos à ocupação de territórios que iam desde a Terra do Fogo até o meio sudeste dos Estados Unidos, promovida a partir de 1492 pelas nações localizadas acima do Equador. Os territórios ocupados foram denominados, desde então, como a América Latina e seus usurpadores os habitantes da Europa.

É dessa dualidade entre o que passa a ser denominado, de um lado, o continente europeu e, de outro lado, o continente latino-americano, que surge a modernidade eurocêntrica. Fundada sob o mito de que a Europa já preexistia a esse padrão de poder e que, a partir da expansão ultramarina, civilizaria o mundo graças à sua racionalidade, ao seu gênio e à sua sofisticação. Esta racionalidade, entretanto, nada mais era do que a estruturação metódica dos meios necessários ao projeto de expansão do capitalismo mundial, mediante a submissão das comunidades periféricas, tidas como primitivas e irracionais, que deveriam fornecer obsequiosamente os recursos naturais necessários à expansão das nações centrais.

Essa fissura ontológica estabeleceu, como afirma Boaventura de Sousa Santos, uma distinção entre humanos e sub-humanos que persiste até os nossos dias e data do Tratado de Tordesilhas, de 1494. Nele, o Papa Alexandre V, ao dividir o novo mundo entre Portugal e Espanha, estabeleceu que os postulados da Igreja seriam válidos apenas na Europa, liberando tacitamente o projeto colonial ultramarino para a submissão dos corpos e a pilhagem das riquezas dos povos latino-americanos e africanos. Estes que não seriam, por conseguinte, merecedores da proteção dos Direitos Humanos, de matriz judaico-cristã, válidos apenas para os habitantes da metrópole. O desprezo pela agenda socioambiental por parte de nossas autoridades públicas é o eco dessa ignomínia nos nossos dias.

A Constituinte de 1987, após as duas décadas em que a ditadura civil-militar vigeu no País a serviço de interesses inconfessáveis, restabeleceu o pacto civilizatório, com o retorno da presunção da inocência, do amplo contraditório e a submissão das polícias ao controle externo do Ministério Público. O princípio da precaução e o reconhecimento da posse tradicional revelaram-se marcos imprescindíveis para a tutela do meio-ambiente e a proteção dos povos indígenas. Com a intervenção do Estado no domínio econômico, seja diretamente ou por empresas estatais, buscou-se diminuir as assimetrias sociais. Tudo isto legitimado pela soberania popular em um sistema eleitoral amplo e fidedigno, capaz de promover o sufrágio livre e democrático das urnas.

Seria cômodo responsabilizar apenas o atual governo pelo desmonte minucioso desses fundamentos do estado democrático de direito: o compromisso de não demarcar um centímetro de territórios tradicionais, o enfraquecimento dos órgãos ambientais, a dúvida lançada contra as urnas eletrônicas, a venda da Eletrobrás e a constante ameaça de privatização da Petrobras, do Banco do Brasil, da CEF, do SUS etc. Mas é preciso ser justo e reconhecer que esta operação de desconstrução civilizatória começou antes, na década de 2010, durante os governos ditos progressistas. Foi sob a bandeira de combate à corrupção e ao crime organizado que nós permitimos a relativização de nossas garantias fundamentais, negando-nos, a nós mesmos, os nossos Direitos Humanos.

Os direitos fundamentais são a base axiológica da democracia e a razão de ser do próprio Estado, motivo por que não há como estabelecer no âmbito interno, nacional, a mesma lógica da ordem internacional vigente há séculos, entre um centro civilizado e sua periferia bárbara, característica do colonialismo. Vale dizer, não é possível a coexistência de uma exótica condição sub-humana em relação a outra, superior, de gente civilizada, no âmbito interno, no nosso próprio País. Pelo pressuposto de igualdade entre os sujeitos que fundam o estado democrático de direito, não é possível dispensar a concidadãos um tratamento jurídico à margem das leis e da soberania popular.

E, desgraçadamente, o que os pacotes anticrime e as forças-tarefas promoveram ao longo dos anos 2010, mesmo que de boa-fé, foi o restabelecimento da dicotomia humano e sub-humano de que nos falava o professor Boaventura, ainda que sob a boa intenção juvenil de punir exemplarmente os poderosos. Como se fosse possível, em algum lugar do mundo real, o sistema de Justiça tratar mal a minoria rica para, a partir de então, dedicar-se a bem cuidar da maioria pobre. Algo que nem o socialismo foi capaz de implementar. O que restou de fato foi a dúvida (ou o medo) do que seria capaz, contra um reles cidadão comum, um sistema judiciário que maltrata até mesmo um ex-presidente da República e o mantém preso sem uma sentença penal minimamente válida.

Como se fosse possível sonhar que se está dormindo e ter um pesadelo dentro desse sonho ruim, assistimos com perplexidade milhões de brasileiros comparecerem às urnas no dia 15 de novembro de 2018 e depositarem seu voto para legitimar esse projeto político neocolonial, assentado sobre a premissa da subalternidade do nosso povo, da convicção de que somos corruptos por natureza, de que os Direitos Humanos são a fina expressão da hipocrisia e de que nossa única alternativa seria entregar todas as nossas riquezas ao capitalismo financeiro internacional, dando curso a um processo de espoliação iniciado em 1492. Vivas ao agronegócio! Vivas às bolsas de valores! Vivas à necropolítica! Vivas ao integracionismo indígena! Vivas às mineradoras e seus mercúrios! Afinal, bandido bom é bandido morto!

Por tudo isto, por favor, não se assustem com uma câmara de gás improvisada na traseira de um camburão. Não chorem pelo desaparecimento de um dedicado indigenista e de um corajoso repórter inglês. Nem mandem flores quando seus corpos forem sepultados. Façam o que pediu Antônio Carlos Jobim quando mataram Chico Mendes: deixem as flores vivas na floresta. Tudo isto já parecia fazer parte do passado. Mas o passado chegou novamente. E estará cada vez mais presente no nosso futuro, a depender do que revelarem as urnas.