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“Viva a advocacia, viva a liberdade, viva a democracia!”

Manifestações reafirmando o compromisso da advocacia com a defesa intransigente do Estado Democrático de Direito marcaram a celebração do 11 de agosto na OAB Paraná. O advogado, jornalista, e presidente da Academia Paranaense de Letras, Ernani Buchmann, esteve entre os convidados para falar em nome dos profissionais paranaenses. Em pronunciamento repleto de referências histórias, Buchmann começou narrando passagens do tenebroso período inaugurado pelo AI-5.

“Eram poucos os advogados dispostos a encarar o arbítrio. Entre nós, especialmente Elio Narezi, René Dotti, Lamartine Correia de Oliveira, Eduardo Rocha Virmond e Antonio Acyr Breda – os dois últimos meus diletos amigos, ainda ativos na militância democrática”, ressaltou, citando em seguida as ações da OAB Paraná para que a ordem democrática fosse restabelecida. Ações que culminaram com a Conferência Nacional. “O discurso de Virmond, exigindo o retorno da normalidade democrática e o fim do AI-5, foi interrompido 17 vezes pelo aplauso dos presentes”, lembrou.

Confira a íntegra do discurso:

“Queridas advogadas e advogados, meus ilustres colegas.

No início da noite de 13 de dezembro de 1968, um então estudante da Faculdade de Direito do Recife ouvia o rádio do carro enquanto dirigia até a casa de um amigo, para estudar para a prova final de Direito Penal.

A Voz do Brasil era de audição compulsória, ninguém escapava dela nos dias de semana, a partir das 19h de Brasília. A crise política era grave, mas o que o estudante ouviu pela voz potente de Alberto Cury, superava a imaginação de qualquer brasileiro. Implantava-se o Ato Institucional nº 5, o famigerado AI-5, que trazia entre suas assinaturas a do Ministro da Agricultura, o engenheiro curitibano Ivo Arzua Pereira e do Coronel Jarbas Passarinho, Ministro da Educação, que no ato de assinar mandou às favas os seus escrúpulos.

Iniciava-se ali a mais tenebrosa das noites da história do país. Foram nove anos, 11 meses e três dias em que o governo federal apresou poderes ditatoriais, fechando o Congresso Nacional, cassando mandatos, aposentando ministros do Supremo Tribunal Federal e suspendendo a vigência do habeas corpus para delitos de natureza política – expressão que deveria ser grafada entre aspas, posto que qualquer ato naquele contexto poderia ser tido como político – entre outras violências institucionais. Poucos meses mais tarde, foi instituída, em outro ato institucional, a pena de morte no país. Como se o próprio Torquemada estivesse dando expediente no Palácio do Planalto.

Fiel ao adágio de que toda ação acarreta a consequente reação, alguns setores da sociedade começaram a se movimentar. A advocacia, por meio de alguns de seus mais expressivos integrantes, jornais como o Estado de São Paulo e a Associação Brasileira de Imprensa passaram à oposição declarada. Já no dia seguinte, o grande advogado Sobral Pinto, defensor incansável dos direitos humanos, foi preso. A barbárie estava instalada.

Aqui no Paraná, a Ordem estava atenta. O presidente Ruy Ferraz de Carvalho percorria quartéis e gabinetes militares em busca de presos políticos. O trágico é que levava no seu automóvel a esposa e as filhas pequenas. Se ele não voltasse de alguma daquelas incursões, a esposa tinha instruções para pegar o carro e ir direto para a casa do então Senador Ney Braga relatar o desaparecimento do marido. Ney era, então, um porto seguro.

Poucos advogados estavam dispostos a encarar o arbítrio. Entre nós, especialmente Elio Narezi, René Dotti, Lamartine Correia de Oliveira, Eduardo Rocha Virmond e Antonio Acyr Breda – os dois últimos meus diletos amigos, ainda ativos na militância democrática.

Já em 1971, Elio Narezi, recém empossado na presidência da Seccional, promoveu em Curitiba uma reunião do Colégio de Presidentes da OAB nacional, da qual saiu a primeira manifestação oficial da Ordem contra o estado de exceção.

A esse tempo, aquele estudante de Direito, por acaso, eu mesmo, já havia retornado de Recife e retomado seu lugar na mesma turma em que havia cursado o primeiro ano. Formou-se no início de 1972.

Com a eleição de Ernesto Geisel, dois anos mais tarde, iniciou-se a chamada distensão, projeto de Geisel e de seu fiel Ministro da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva pela redemocratização “lenta, gradual e segura”. Enquanto isso, nos porões os presos políticos continuavam a ser torturados – e a morrer, como Vladimir Herzog e Manoel Fiel Filho.

A sede democrática dos brasileiros, já expressa nas eleições para o Senado em 1974, era insaciável, ainda que tenha havido grande retrocesso em 1977, com a promulgação do Pacote de Abril, suspendendo eleições e, mais uma vez, cassando mandatos.

Caberia à OAB fazer a pauta avançar. Em 11 de agosto daquele ano, o lendário professor Goffredo da Silva Telles Junior leu a Carta aos Brasileiros, a mãe de todas as cartas que nos vemos na contingência de seguir assinando.

Era um ótimo início. Mas a grande oportunidade se deu com a realização da 7ª Conferência Nacional da Advocacia, em maio de 1978, sob a liderança de Raymundo Faoro, presidente do Conselho Federal, e Eduardo Rocha Virmond, presidente da OAB Paraná.

Sob as vistas do ministro da Justiça, Petrônio Portela, e do governador Jaime Canet Júnior, o discurso de Virmond, exigindo o retorno da normalidade democrática e o fim do AI-5, foi interrompido 17 vezes pelo aplauso dos presentes.

Advogados e jornalistas não perdiam a chance de cutucar o poder discricionário. Desde o Pasquim, o mais famoso dos jornais alternativos, passando por Opinião, Movimento e outros, qualquer veículo poderia ser um canal em direção às liberdades. Nossas armas eram as palavras.

Como advogado, e como jornalista, jamais estive ao lado da omissão, até porque tive o melhor dos professores dessa matéria chamada democracia: René Ariel Dotti, paraninfo da minha turma.

Como diretor de Fundação Cultural de Curitiba, criei o programa Parcerias Impossíveis, trazendo para o palco do Teatro Paiol pessoas como Fernando Henrique Cardoso, Lula, Ziraldo, Henfil, Fernando Gabeira, Sérgio Ricardo e outros militantes contra as arbitrariedades do poder da época, com o irrestrito apoio do prefeito Jaime Lerner, então nomeado, o que não impedia sua crença irrestrita na liberdade de expressão.

Naqueles tempos, aqui em Curitiba, chegaram a ser presos até professores de escolas de educação infantil, acusados de ensinar marxismo para criancinhas. Um disparate. Gestões fundamentais foram encabeçadas pela Comissão de Justiça e Paz da Cúria Metropolitana, dirigida pelo advogado Newton Stadler de Souza, sob a orientação de Dom Pedro Fedalto, a quem fomos perturbar, Zélia Passos, cujo marido, o advogado Edésio Passos, estava entre as vítimas daquela truculência e mãe do Dr. André, aqui presente, pois Zélia, Fábio Campana e eu, em pleno jejum de uma sexta-feira da Paixão, pedimos a D. Pedro sua intercessão junto aos homens esclarecidos do governo estadual, até que, após uma luta intensa, foram liberados os 15 presos nas celas da Polícia Federal.

De minha parte, a ironia e o sarcasmo também se tornavam lanças a estocar o inimigo. Apesar da distância ideológica dos comunistas, cheguei a escrever em um jornal clandestino do PCdoB, que não passou do primeiro número, e hospedei o líder do partido, João Amazonas, em minha casa.

Do outro lado da rua, no Bom Retiro, encostado no muro da garagem da Construtora Greca, dava plantão um agente da Polícia Federal, nosso “sombra”, que não fazia questão de se esconder, apenas baixava o chapéu sobre os olhos. Dormia no frio, sentado na grama, pobrezinho! Zombávamos dele. Tudo pela liberdade de pensamento, tudo pela liberdade de expressão.

O caminho começava a ser aplainado. Em 1979, foi promulgada a Lei de Anistia – com restrições de muitos, que consideravam seus efeitos parciais. Mas foi com ela que o irmão do Henfil voltou ao país, embora Marias e Clarisses, as viúvas dos torturados, continuassem a chorar suas perdas. Então o AI-5 foi parar na estante das vergonhas históricas.

Assim as eleições voltaram a ser diretas, primeiro para governadores, depois para prefeitos das capitais. Faltava eleger o presidente da República.

Eu dirigia a área criativa de uma agência de propaganda, a Exclam, quando fui chamado pelo jornalista e publicitário Antonio Freitas, muito próximo do Senador Affonso Camargo, então secretário-geral do PMDB. O presidente era o lendário deputado Ulysses Guimarães.

Affonso pediu que criássemos a conceituação e o material de divulgação para a campanha em prol das eleições diretas para a presidência da República. Com os publicitários Sérgio Mercer e Bira Menezes criamos o bordão “Eu quero votar pra presidente”, expressando o desejo maior da nação. Affonso gostou do que viu e nos levou para uma reunião com Ulysses Guimarães, na casa do deputado em São Paulo.

Apresentei a campanha. Ulysses emitiu alguns grunhidos, como era do seu estilo, e ficamos ser saber se havia gostado ou não. Acontece que Affonso conhecia bem o seu presidente. Na saída do escritório em que estávamos, vimos uma equipe da Rede Globo esperando na sala de visitas. A repórter surpreendeu-se com a presença do Senador e perguntou, o que havia de novo:

– O Deputado acabou de aprovar a campanha pelas eleições diretas para presidente.

Na hora do almoço, a campanha estava na manchete do jornal Hoje da Rede Globo, com o nosso material espalhado sobre o sofá da casa da D. Mora Guimarães.

Um mês depois, em 12 de janeiro de 1985, na Boca Maldita, foi realizado o primeiro comício das Diretas, reunindo 20 mil pessoas em uma tarde de verão. Isso que boa parte dos curitibanos estava flanando pelos litorais ensolarados. Depois, a causa tomou conta do país.

Em abril a Emenda Dante de Oliveira, que previa a escolha no presidente pelos eleitores brasileiros, foi derrotada. Mas sua rejeição pelo Congresso foi o estopim para a campanha pela Assembleia Constituinte, enfim promulgando-se a Carta em 1988.

Já se vão quase 35 anos de vigência da Constituição. Ela tem sido a nossa garantia e, assim como a democracia, exige ser cuidada, regada, tratada com carinho – como há pouco citou nesta tribuna o Dr. Lucio Glomb, e afirmaram inúmeras personalidades desde a redemocratização de 1945.

É inadmissível que a esta altura do século XXI tenhamos que gastar energia defendendo a legitimidade dos princípios do estado de direito, a afastar os arautos do obscurantismo. Porém, se as circunstâncias assim o exigem, não iremos nos abastardar. Não nos curvaremos à indecência golpista que tentam nos fazer engolir.

Continuemos firmes na perene luta pelas liberdades. A advocacia paranaense e brasileira jamais abrirá mão dos princípios democráticos.

Viva a advocacia, viva a liberdade, viva a democracia!

Ontem, hoje e sempre!

Muito obrigado.”