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Bola dividida

Por Marcelo Tognozzi

Desde 2013, dormita nos escaninhos do Supremo a emenda constitucional nº 73. Aprovada em 2 turnos por no mínimo 3/5 dos senadores e deputados, foi promulgada pelo então presidente do Congresso, o senador Renan Calheiros. Com uma canetada, o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa invalidou o trabalho do Congresso.

Passados 10 anos, a emenda continua solenemente ignorada e a decisão solitária de Barbosa nunca foi julgada pelo plenário.

Prevaleceu o argumento da ANPF (Associação Nacional dos Procuradores Federais) na Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade), pelo qual só o Judiciário pode propor leis que criam ou extinguem tribunais. Isso, apesar de a Lei 9.868 de 1999 prescrever no seu artigo 10 que medida cautelar envolvendo Adin só pode ser tomada por maioria absoluta dos integrantes do STF, salvo no recesso.

Na quarta-feira (22), o Senado aprovou uma PEC limitando as decisões monocráticas dos ministros do Supremo, como a de Joaquim Barbosa. Com o placar de 52 votos a favor, a votação fez tocar o alarme no STF.

O desgaste da Corte diante da população vem sendo medido pelas pesquisas de opinião, como a divulgada em 22 de novembro pela Genial/Quaest. De acordo com o levantamento, os brasileiros que querem um freio nas decisões monocráticas do Supremo são 66%, enquanto 68% apoiam mandatos fixos para os ministros.

Por que o placar de 52 votos deixou ministros à beira de um ataque de nervos? Porque são 54, só 2 a mais dos votos necessários para o Senado aprovar o impeachment de um ministro do STF – assunto em pauta desde que a Lava Jato partiu para cima da Corte há mais de 8 anos. A reação dura, os discursos e ameaças contra o Congresso e sua prerrogativa de legislar mostram que o Supremo não quer juízes; quer guerreiros. E, em uma ocasião como esta, a necessidade faz de Flávio Dino o sujeito ideal.

Do ponto de vista técnico, sem emoções à flor da pele, a PEC votada pelo Senado é boa por vários motivos. Um deles é a proteção ao tribunal dos ataques infundados, venenosos, sobre venda de decisões monocráticas que volta e meia fervilham nas redes sociais. Outro é o simples fato de que o país não pode viver a insegurança de decisões provisórias dadas por 1 ministro solitário, as quais duram anos a fio e podem, a qualquer momento, ser alteradas por uma decisão colegiada.

Mas isso importa pouco diante de uma crise cujo centro é a República. Há uma disputa de poder cada vez mais dura entre Poderes que deveriam ser harmônicos entre si, como estipula a Constituição. O bom senso tem sido ignorado. O diálogo e o entendimento nunca prosperaram. No governo passado, a polarização era com o Executivo. Agora, é com o Legislativo. Um conflito sem fim.

O problema não é de comunicação, como avalia o atual presidente da Corte, ministro Roberto Barroso, como se o STF, hipercomunicativo com sua TV e redes sociais, fosse um eterno incompreendido. O problema tem sido a falta de maturidade para negociar, dialogar, deixar a polarização de lado e reacomodar a República.

Nessa crise de convivência entre os Poderes, o Supremo, como mostrou o ministro Gilmar Mendes, é parceiro do Planalto no exercício do poder. Governa junto. Situação no mínimo complicada, sem a menor possibilidade de dar certo, porque o Tribunal abriu mão de apitar o jogo para disputar a bola com o Executivo e o Legislativo e, o que é pior, com fome de gol e fazendo falta. Assim, muda leis, decide sobre aborto, drogas, demarcação de terras, fake news, atos “antidemocráticos” e até sobre proibição de cachorros e gatos em condomínios.

A Constituição de 1988 determinou 5 anos de mandato para o presidente da República sem direito à reeleição. Foi uma medida sábia, de defesa contra o hiperpresidencialismo, com o Executivo prioritariamente focado na reeleição, em negociar seus 8 anos no poder e abrindo a porteira para relações promíscuas e intermináveis com os demais poderes. A reeleição trouxe distorções, muitas moedas de troca e politizou tudo.

Exemplo do “aperta cá que eu aperto lá” foi a reação do Supremo à PEC aprovada pelo Senado, não só com palavras duras, mas com gestos como o do ministro Alexandre de Moraes, solicitando explicações ao Congresso sobre as emendas de comissões, as RP8, dando asas à uma ação movida pelo Partido Novo. O efeito: a Câmara já sinalizou que não mexerá no vespeiro da PEC tão cedo.

A menos que, como ocorreu com Fernando Collor e Dilma Rousseff, a pressão pelo impeachment de algum ministro do Supremo venha diretamente das ruas, o Congresso não tomará uma medida extrema. Pedidos de impeachment contra ministros do Supremo chegam toda hora à mesa do presidente do Senado Rodrigo Pacheco e são solenemente engavetados.

Nos últimos 45 anos, todas as grandes mudanças começaram nas ruas. Anistia, Diretas Já, Constituinte, impeachments e até mesmo a Lava Jato foram respaldados pelas ruas. Sem elas, o placar do Senado não vale absolutamente nada.

As pesquisas, inclusive as qualitativas, mostram um grau crescente de insatisfação e incômodo da população com o excesso de exuberância e oportunismo do Supremo. Ele lavou as mãos quando a Lava Jato condenou Lula e, depois, voltou a lavá-las ao libertar Lula e condenar a Lava Jato. O eleitor médio, a dona de casa e muitos políticos olham para esse Supremo e lembram do “Bola Dividida”, aquele samba de Luiz Ayrão sobre a namorada do melhor amigo:

“Se ela fez com ele, vai fazer comigo”.