Esperança Garcia, uma mulher negra, escravizada na região de Oeiras, sul do Piauí, no século 18, é reconhecida pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) como a primeira advogada do país. Ela lutou por direitos e teve sua natureza jurídica percebida logo cedo, quando, aos 19 anos, escreveu em 6 de setembro 1770 uma petição ao então governador da Capitania de São José do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, onde denuncia maus-tratos e abusos físicos contra ela e seu filho, pelo feitor da Fazenda Algodões. Na carta, Esperança denunciou ainda violência contra crianças e companheiras, no que é considerado o primeiro habeas corpus do Brasil. Fugiu pouco depois, reaparecendo numa relação de trabalhadores escravizados da Fazenda Algodões, datada de 1778, casada com o angolano Ignácio e com sete filhos
A carta de Esperança Garcia é considerada a primeira petição escrita por uma mulher na história do Piauí, o que a torna uma precursora da advocacia no estado.[ Também é um documento importante nas origens da literatura afro-brasileira. Na data de envio, 6 de setembro, é comemorado o Dia Estadual da Consciência Negra. Tramita no Congresso Nacional do Brasil o projeto de Lei nº 3.772, de 2019, da deputada Margarete Coelho , para inscrever Esperança Garcia no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria, conhecido como Panteão da Pátria.
Em 2017, o Memorial Zumbi dos Palmares, espaço dedicado à cultura negra em Teresina, foi reformado e reinaugurado com o nome de Memorial Esperança Garcia. No carnaval de 2019, a Estação Primeira de Mangueira, do Rio de Janeiro, fez uma homenagem a Esperança Garcia em seu samba-enredo “História pra Ninar Gente Grande”. Em 2023, a escola de samba Em Cima da Hora homenageou Esperança Garcia em seu enredo, na Série Ouro dos desfiles do Rio.
PROJETO DE LEI Nº , DE 2019
(Da Sra. MARGARETE COELHO)
Inscreve o nome de Esperança Garcia no Livro dos Heróis e
Heroínas da Pátria.
O Congresso Nacional decreta:
Art. 1º Fica inscrito o nome de Esperança Garcia no Livro dos
Heróis e Heroínas da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade
Tancredo Neves, em Brasília.
Art. 2º Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.
JUSTIFICATIVA
A Lei nº 11.597, de 29 de novembro de 2007, que dispõe sobre a inscrição de nomes no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, estabelece que o “O Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, destina-se ao registro perpétuo do nome dos brasileiros e brasileiras ou de grupos de brasileiros que tenham oferecido a vida à Pátria, para sua defesa e construção, com excepcional dedicação e heroísmo”.
Atualmente, entre os nomes inscritos no livro de aço que imortaliza os heróis e heroínas da Pátria, apenas um sexto são mulheres: Anna Nery, Anita Garibaldi, Barbara Pereira de Alencar, Jovita Feitosa, Clara Camarão, Maria Felipa de Oliveira, Maria Quiteria de Jesus Medeiros, Sóror Joanna Angélica de Jesus, Zuzu Angel, Dandara dos Palmares e Luiza Mahin.
Ao longo de quase quatro séculos, a escravidão balizou as relações humanas, sociais, políticas, econômicas e culturais do país, e por isso constitui uma das mais nefastas características da formação histórica brasileira.
Os ecos desse passado de inaceitável injustiça repercutem, ainda hoje, na sociedade. A história oficial sempre tentou apagar a resistência do povo negro, sobretudo das mulheres negras. A transformação dessa lamentável realidade, decorrente, em grande parte, do vergonhoso legado da escravidão, requer o
engajamento decidido de todos aqueles e aquelas que buscam construir uma democracia não apenas formal, mas também material.
Esperança Garcia foi uma escrava negra que viveu na capitania de São José do Piauí na segunda metade do Século XVIII. Foi reconhecida pela Ordem dos Advogados do Brasil como a primeira advogada piauiense, por ter peticionado ao Governador da época denunciando maus-tratos a si, a suas companheiras e a seus filhos, bem como noticiando sua separação do marido e o impedimento de batizar os filhos. A carta, redigida no dia 6 de setembro de 1770, revelou aquilo que talvez fosse um grande segredo:
“Eu sou escrava de Vossa Senhoria da administração do capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão foi lá administrar que me tirou da fazenda de algodões, onde vivia com meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que cai uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda aonde me tirou para eu viver com meu marido e
batizar minha filha” (MOTT, 2010).
Nesta petição de habeas corpus, Esperança Graça distingue-se por sua resistência, através da luta pelo direito, e por sua atuação como membro da comunidade política que a escravizava. Ela sabia que aquelas ações truculentas do fazendeiro que a escravizava não tinham respaldo legal nem mesmo no sistema escravocrata, embora suas reclamações só tivessem Informações extraídas do “Dossiê Esperança Garcia: símbolo de resistência na luta pelo direito”, organizado pela professora Maria Sueli de Sousa e publicado pela Editora da Universidade Federal do Piauí, em 2017 eficácia se outros sujeitos, livres ou escravizados, compartilhassem do mesmo sentimento de insatisfação em relação ao cativeiro, aos maus-tratos e à
maneira truculenta como Antônio Vieira do Couto acolhia suas solicitações em querer viver com sua família na antiga fazenda.
Ao conseguir provável apoio, Esperança Garcia utilizou a escrita como forma de denunciar inspetores das fazendas brasileiras, por entender que eles deveriam agir de acordo com as regras jurídicas e religiosas prescritas pelos colonizadores, que concediam às pessoas escravizadas prerrogativas de
manter a fé cristã, constituírem família e batizarem seus filhos nos preceitos do catolicismo.
Nesse momento Esperança Garcia manifestou sua qualidade de
intérprete da escravidão e do direito português, entendendo que mesmo na
condição de escravizada, a aceitação do cristianismo e o reconhecimento da
autoridade portuguesa eram prerrogativas que permitiriam recorrer ao direito
português nos casos de excessos dos senhores e, em caso de conversão ao
cristianismo, prerrogativa de construir laços matrimoniais e de batismo.
A habilidade de usar o letramento como potencial reivindicatório, expondo no papel suas necessidades, relacionando-as com o contexto jurídico-administrativo e religioso mais amplo da época, evidencia Esperança Garcia como símbolo de resistência ao regime escravocrata brasileiro. Sua “Carta” foi
reconhecida e elencada como símbolo de resistência negra e utilizada para a construção de uma identidade de resistência das mulheres negras piauienses.
Esperança Garcia, portanto, além de compor diversos trabalhos historiográficos que tratam da escravidão, tornou-se símbolo de resistência e heroína negra do Piauí.
O antropólogo e historiador Luiz Mott, que encontrou a Carta de Esperança Garcia no arquivo Português em 1979, destacava em discursos a importância da fonte para a história do Piauí, a bravura da mulher escravizada em relatar as denúncias de violência no cativeiro:
“Outra importante descoberta arquívistica foi um pequeno
documento escrito a mão toda cheia de garranchos com muitos
erros ortográficos: trata-se de uma petição escrita em 1970, por
uma escrava do Piauí, Esperança Garcia. Trata-se do
documento mais antigo de reivindicações de uma escrava a
uma autoridade. Documento insólito! Primeiro por vir assinado
por uma mulher, já que mulher escrever antigamente era uma
raridade. […] Segundo, por se tratar de uma petição escrita por
uma mulher negra.”
Em abril de 1994, foi criado o coletivo de mulheres negras
Esperança Garcia no Piauí, entidade civil organizada, composto apenas por
mulheres negras, que tinha como papel fundamental a luta por projetos sociais
e políticos, visando à elevação da autoestima da mulher negra no estado, ao
passo que objetivava o desenvolvimento de atividades comunitárias. Ademais,
em Nazaré do Piauí, cidade onde Esperança Garcia viveu grande parte de sua
história, foi fundada uma maternidade com seu nome como forma de
homenageá-la.
A elevação de monumento em homenagem a Esperança Garcia
no Centro Artesanal de Teresina-PI, um ponto turísticos da cidade, ao lado de
personalidades importantes para a história do Estado, como o poeta Torquato
Neto, foi uma forma de representação, conferindo rosto a uma mulher que se
tornou símbolo do ativismo negro dentro na história piauiense, já que não se
tem registros visuais de sua fisionomia.
A Carta de Esperança Garcia foi um tipo específico de resistência:
uma atuação como membro da sociedade escravocrata, que denuncia e pede
proteção do Estado, como um habeas corpus, numa expressão de exercício da
advocacia em nome próprio e de outras mulheres que também sofriam maus-
tratos. A Carta foi uma forma de transmitir as dores da escravidão, permitindo a
formação de uma memória coletiva e da identidade negra, tirando-a do mundo
da escravidão e reposicionando-a na história como heroína da resistência, que
já foi assim incorporada pela Lei 5.046, de 7 de janeiro de 1999, de autoria do
deputado Olavo Rabelo de Carvalho Filho, que instituiu o dia 6 de setembro,
data em que a carta foi escrita, como o dia Estadual da Consciência Negra no
Piauí.
O reconhecimento simbólico de Esperança Garcia como primeira
advogada piauiense ocorreu em 24 de agosto de 2018, na Ordem dos
Advogados do Brasil – Secção Piauí. Durante o Desfile das Escolas de Samba
do Carnaval 2019 do Rio de Janeiro, a Mangueira homenageou heróis e
heroínas esquecidas pela História oficial do Brasil e incluiu Esperança Garcia
como destaque na fantasia utilizada pela Rainha de Bateria.
A inscrição do nome de Esperança Garcia no livro dos Heróis e
Heroínas da Pátria, ao lado das Heroínas negras Maria Felipa, Dandara dos
Palmares e Luiza Mahin, portanto, reafirma a identidade negra e feminina e
oferece o justo reconhecimento de seu papel histórico no país.
MARGARETE COELHO
Deputada Federal
PP/PI